O meu ingresso no curso, no primeiro semestre de 2006, foi sem dúvida alguma um momento dos mais especiais da minha vida. De fato houve um encontro muito sensível entre os alunos que compunham a turma e a própria instituição de ensino (incluindo, naturalmente, os professores). Foi somente no primeiro semestre de 2007 que tivemos uma primeira disciplina ministrada pela professora Eleonora Fabião. No seu curso, intitulado Cena Experimental Pós-Guerra, entramos em contato com diversas referências que se tornaram determinantes nos anos seguintes da graduação. Para mim, aquele curso revelou de maneira impecável a imensidão do universo no qual eu estava me lançando. Ao mesmo tempo, exigiu de mim um constante vasculhar-se para dar conta de validar as minhas impressões sobre o mundo e suas engrenagens. Eu estava no terceiro período quando comecei a intuir que fazer teatro talvez tivesse mais a ver com a vida do que com qualquer outra coisa. Que tinha mais a ver com corpo do que com imitação. Performance. Um turbilhão de coisas. Uma maravilha e um desespero: num enovelamento constante. Em 2008, dois novos cursos com Fabião me trouxeram de novo ao aqui e agora: Espetáculo: Ator III e Dramaturgias do Corpo. Em ambos, as reflexões e criações foram sempre fortemente rebatidas por sobre o corpo, por sobre a sensibilidade e expressividade nele contida. Nessa época, o famoso Constantin Stanislavski veio a fazer sentido, veio a causar arrepio. Também nesse ano, eu experimentava a possibilidade de multiplicar até o outro as coisas e sentimentos que mantia guardado em mim. Nada escapava de uma aguda reflexão sobre os porquês, sobre os motivos e as escolhas. Eu desbravei um pouco mais da palavra-enigma: dramaturgia. E tudo isso de maneira límpida e precisa. Precisão. Necessidade. E a maior força de todas, chamada honestidade radical.
Assim, ao convidar Fabião para ser a orientadora de direção do meu projeto de formatura, na verdade, eu queria apenas convidá-la a assumir, oficialmente, a função que ela desempenhou durante esse tempo todo. Foi quando Fabião se ausentou por alguns anos do Brasil (durante os anos de 2009 e 2010), que eu me percebi tentando me guiar da maneira como intuia que ela me guiaria. Eu passei a pensar, criticar e produzir dramaturgia. Em relação ao trabalho com atores, era sempre seus corpos que primeiro algo diziam. Um apuro visual, uma clareza irrevogável e intencional sobre o exercício da encenação. Um bom time de referências. Organização e estudo. Disciplina. Algumas dessas coisas, em sua maioria, ganharam consistência e importância depois que cursei as tais disciplinas citadas acima.
Movido por algumas dessas preocupações, comecei o ano de 2011 pensando em como guiar o elenco. Como estimular sua pesquisa e dinamitar sua dedicação? São tarefas que competem a mim. O meu trabalho como diretor é trabalho de pura sedução. Sem maldades. Sem cinismo. Mas com devoção e jogo. Com jogo e movimento, eu preciso guiar meus atores para que ajam, indiretamente, na inteireza de sua criação. Mas não basta se exigir resultados. É preciso conhecer cada um dos corpos, para não solicitar aquilo que não se pode ter. É um jogo sensível e de extrema confiança. Em janeiro, enviei a cada um dos atores um e-mail intitulado “desejo”. Neste, eu pedia que cada um me respondesse, com toda sinceridade, quais eram os seus desejos mais intensos. Aquela vontade que, como nenhuma outra, era capaz de consumí-los. Em alguns dias eu recebi suas respostas e cruzando-as fui, aos poucos, percebendo que o nosso espetáculo precisaria, minimamente, girar em torno de tais desejos. Ou nem isso. Eu juntei suas respostas ciente de que, assim que possível, eu as colocaria em jogo para que a nossa obra desde o início fosse catalisada por nossa própria vida e pelo corpo – nosso – de cada um.
Era o segundo dia do ano 2011 quando também enviei a professora Eleonora Fabião um e-mail, convidando-a para ser a orientadora de direção do meu projeto de formatura. Neste e-mail, eu dizia aquilo que durante muito tempo foi o projeto: um espetáculo a ser criado a partir do capítulo inicial da obra O Anti-Édipo. Em poucos dias, Fabião já havia me respondido, sugerindo uma reunião para meados de março, quando as atividades acadêmicas já teriam começado. Era isso. O convite havia sido feito. Mas, para mim, era nítida a certeza de que seria necessário, até o primeiro encontro, estudar bastante visando clarear e aprofundar ainda mais os meus desejos e intuições quanto ao projeto.
É difícil escrever sobre esta orientação de direção sem soar meloso ou desmedidamente apaixonado. Não sem querer intitulei este trecho do memorial de Honestidade radical, porque é bem isso. O encontro com Eleonora me formou um diretor teatral. Não tivemos dúvidas nem certezas, tivemos ação e diálogo mútuo, linha cruzada e fala simultânea (como ela mesma comentou durante a banca de avaliação de Sinfonia Sonho). Eleonora, bem como as professoras orientadoras de Esperando Godot, Gabriela Lírio e Livia Flores, esteve atenta durante todo o tempo aos meus anseios criativos. Não quer dizer que não tenha me oferecido uma série de contrapontos e questionamentos. Sempre que necessário ela o fez. Quer dizer apenas que foi parceira. Essa é a palavra chave de sua postura enquanto orientadora de direção: parceria. Sinfonia Sonho é tão de Fabião quanto de Liberano. Ela também assina a dramaturgia. Dela também é a encenação, bem como o detalhe quase imperceptível do corte da barra do vestido de uma das personagens. Falo da preocupação com minúcias e grandes questões. Registro aqui a importância que foi ouvir dela que para alguns assuntos e questões, era ela quem estava ali para resolver. Quer dizer: a essa postura eu hoje retorno pensando se terei condição de seguir me orientando depois dessa orientação. Afinal, se estou numa escola de direção e o professor orientador visa me instruir no meu ofício, é de fato determinante pensar neste depois.
Portanto, gasto aqui neste memorial o caminho percorrido e escrevo sobre ele para clarear a potência do que até então foi-me plena satisfação. Tento traduzir em outras falas a força do olhar, do toque e da palavra. Meu arsenal como profissional tende a tudo isso, portanto ouso levar comigo a exigência de não se furtar de certas questões; o olhar atento e generoso ao outro que me alimenta; a obstinação da busca; o valor dos sonhos; o saber abandonar; o saber deter; e, sobretudo, a elegância feroz de alguma irredutibilidade. Em um dado momento, achei que Eleonora sabia exatamente o que era o espetáculo que eu ainda não tinha a consciência. A ela, sou grato pela espera. Por ter me permitido buscar “sozinho” quais caminhos tomar, quais ações escrever e quais palavras usar.
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Capítulo 5 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.