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quarta-feira, 18 de abril de 2012

“O teatro e o seu bom uso”

por Rodrigo Monteiro

“Sinfonia Sonho” é o quarto espetáculo do Grupo Teatro Inominável, uma companhia que nasceu em 2008 a partir do encontro de estudantes de teatro da UFRJ e da UNIRIO. Com dramaturgia construída ao longo do processo a partir de várias referências, a representação do massacre do Realengo, ocorrido em abril de 2011, é a ponte além da narrativa mais visível. Um homem, um dia, entra armado em uma escola pública e mata vários estudantes aleatoriamente, atirando em si próprio depois em um dos corredores. Incompreensão, dor. Mães que perdem seus filhos, a escola não mais como um lugar seguro, a criança como uma promessa de futuro agora inexistente. Eis aí o desafio: como tratar de um acontecimento de proporções tão graves, com conseqüências tão sérias e sentimentos tão profundos em uma cidade e em um país que parecem não gostar de lembrarem-se de coisas ruins? Com 24 anos, Diogo Liberano, que assina a dramaturgia e a direção, enfrenta aqui o desafio e vence. “Sinfonia Sonho” é um espetáculo teatral que emociona sem ser piegas, faz pensar sem ser moralista, entretém sendo bastante responsável.

Em cartaz no Teatro Sérgio Porto, “Sinfonia Sonho” se apresenta com elementos que remetem às peças didáticas de Bertolt Brecht, embora aqui a questão não seja politicamente ideológica, mas diga respeito à violência com que tratamos a nós mesmos, os nossos e aqueles que não conhecemos. Não há cortinas que abrem no início (gestão tão raro ultimamente) e o diretor entra em cena, participando da peça, lendo as rubricas previstas no texto. Não há também coxias e a encenação prevê a delimitação de um espaço em que os atores se sentam e assistem às cenas quando não estão nelas. Os ganhos da encenação se vêem na forma como a peça constroói a sua linguagem e, logo em seguida, a desconstrói. A divisão, por exemplo, entre espaço para atuar e espaço para esperar desaparece em alguns momentos. No mesmo sentido, a oratória pausada e irregular, que marca o teatro como não-realidade, se transforma por vezes em um tom absolutamente natural, bastante próprio do real além da narrativa. As expressões corporais e faciais agem no mesmo vai e vem do discurso oral, o que, e aí está o maior ganho estético da produção, não permite que as emoções se aprofundem além da consciência, que o espetáculo caia no melodrama e que a catarse perturbe a reflexão. Não há nenhuma gag de humor negro, mas o riso vêm mesmo assim quando a forma aparece mais do que o conteúdo, um sinal aparente de despertar o espectador para o que se está (vi)vendo. Se “Sinfonia Sonho” é uma produção cheia de méritos pelo conteúdo abordado, a forma escolhida é seu maior lucro.

Kevin e Célia são filhos do casal Eva (Virgínia Maria) e Frank (Dan Martins). A morte do pai de Frank e a transferência de trabalho de Eva, faz com que a família se mude de cidade no dia do aniversário de Célia. Na nova casa, a família é vizinha de Corley (Andrêas Gatto) e Moira (Laura Nielsen), que vivenciam uma estranha gravidez (Gunnar Borges). Os ambientes familiares e suas questões são ponto de partida para ser o contraponto do mundo exterior ou, talvez, o seu espelho. Com um elenco constituído somente por bons trabalhos de interpretação, Liberano providencia um espetáculo de grandes qualidades também nesse sentido. No entanto, os trabalhos de Márcio Machado (Kevin) e, sobretudo, de Adassa Martins (Célia) se destacam positivamente, talvez, porque estão mais tempo em cena e, por isso, têm mais oportunidades de mostrar um excelente uso da voz e do corpo em prol do todo cênico. Coerentes com a concepção que embasa uma produção cênica disposta a representar um tema pesado de forma não tanto, não há grandes aparatos técnico-visuais em cena. Discretos, figurinos, iluminação e trilha sonora, agem positivamente pouco, embora o último quesito chame, talvez, mais a atenção do que realmente poderia. Em termos de dramaturgia, o aspecto negativo é a fuga da hierarquia, essa expressa no esforço de fazer de todos os personagens, em algum momento, o protagonista. Duas horas de narrativa parece ser tempo demais para o trato dessas questões dessa forma e o cansaço prejudica a fruição, mesmo que não lhe tire valor.

Na escola, Kevin e Célia estão ensaiando, cada um com sua turma, uma peça de teatro. A peça de dentro faz metáfora para a peça de fora. O teatro, no seu conceito mais sublime de um ator que interpreta um personagem diante do público, aparece aqui de forma bastante elogiável.

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Ficha técnica:
Dramaturgia e direção: DIOGO LIBERANO
Orientação de direção: ELEONORA FABIÃO
Assistência de direção: THAÍS BARROS
Direção de Movimento: HELENA CANTIDIO
Elenco: ADASSA MARTINS + ANDRÊAS GATTO + DAN MARINS + FLÁVIA NAVES + GUNNAR BORGES + LAURA NIELSEN + MÁRCIO MACHADO + NATÁSSIA VELLO + VIRGÍNIA MARIA
Direção Musical: PHILIPPE BAPTISTE
Cenário: LEANDRO RIBEIRO
Orientação de Cenário: RONALD TEIXEIRA
Figurino e Visagismo: ISADHORA MÜLLER + MARINA DALGALARRONDO
Orientação de Indumentária: DESIRÉE BASTOS
Iluminação: DAVI PALMEIRA + THAÍS BARROS
Orientação de Iluminação: JOSÉ HENRIQUE MOREIRA
Registro Fotográfico: RAFAEL TURATTI
Registro Audiovisual: THAÍS GRECHI + PEDRO BENTO
Preparação Vocal: VERÔNICA MACHADO
Designer: DIOGO LIBERANO
Assessoria de Imprensa: CAROLINA CALCAVECCHIA
Marketing Cultural: DAVI PALMEIRA
Produção Executiva: ADASSA MARTINS + GUNNAR BORGES
Direção de Produção: ALINE RABELO + DIOGO LIBERANO
Realização: TEATRO INOMINÁVEL + UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO [UFRJ]

Fonte: http://teatrorj.blogspot.com.br/2012/04/sinfonia-sonho-rj.html

terça-feira, 17 de abril de 2012

“Montagem imperdível no Sérgio Porto”

TERÇA-FEIRA, 17 DE ABRIL DE 2012

Teatro/CRÍTICA
"Sinfonia sonho"
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Montagem imperdível no Sérgio Porto
Lionel Fischer

"Sinfonia sonho apresenta a história de Kevin, uma criança de nove anos que de súbito se torna alvo de um desejo: o de se tornar música, por conta de uma peça teatral que começa a ensaiar em sua escola. Inspirado nos recentes acontecimentos envolvendo o massacre de crianças em espaço escolar na cidade do Rio de Janeiro, o espetáculo visa trazer a tona um olhar mais atento e responsável sobre a infância e, por extensão, também sobre o futuro".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza algumas das premissas que motivaram a criação de "Sinfonia sonho", quarto espetáculo da companhia carioca Teatro Inominável, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Diogo Liberano assina texto e direção, estando o elenco formado por Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Flávia Naves, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Márcio Machado, Natássia Vello e Virgínia Maria.

Inspirado nas obras "O anti-Édipo", de Félix Guattari e Gilles Deleuze, e no romance "Precisamos falar sobre o Kevin", da escritora norte-americana Lionel Shriver, o texto de Diogo Liberano surpreende não apenas pelas pertinentes reflexões que empreende sobre temas como infância, futuro, relações familiares e diversificadas perversões, dentre outros, mas também pela forma com que os trabalha.

Desde logo fica claro que a montagem renuncia totalmente ao realismo, a começar pelo fato de que um ator (talvez o próprio Diogo Liberano) apresenta os personagens e lê algumas rubricas. Postados lado a lado, sentados em cadeiras e olhando fixamente a platéia, os atores sugerem estar imobilizados numa foto, congelados no tempo em algo que remete a um  álbum de família.

Pouco a pouco, escapam dessa moldura - ainda que a ela retornem com freqüência - e se materializam na cena. Mas não o fazem como personagens cotidianos, mas sim impregnados de uma espécie de partitura física que traduz a essência de suas personalidades. E não raro pode-se constatar que, mesmo aqueles que não estão participando diretamente de uma cena, nem por isso permanecem estáticos, como ocorre no início do espetáculo, mas continuam expressando seus sentimentos, anseios ou dúvidas através de um esmerado universo gestual.

Isto posto, acredito ser impossível o espectador não se envolver totalmente com uma montagem que, tendo a motivá-la um texto belíssimo, exibe deslumbrante teatralidade. São tantos os signos e símbolos exibidos que torna-se impossível esmiuçá-los. E mesmo que alguns deles permitam múltiplas interpretações ou possam eventualmente soar um tanto obscuros, o que importa ressaltar é que estamos diante de um espetáculo que, dada a sua natureza, coloca o espectador no único lugar possível, ou seja, o lugar do desconforto.

Ao longo da montagem, e sobretudo depois que a mesma se encerrou, me ocorreram muitas perguntas. Mas não me preocupei nem um pouco em tentar achar respostas, digamos, razoáveis, racionais, pois aí estaria negando as emoções vividas, estaria apenas tentando nomear o que muitas vezes não precisa - nem deve - ser nomeado. O fundamental, para mim, foi constatar que tive um fortíssimo encontro com este espetáculo, o que equivale a dizer que tive um fortíssimo encontro comigo mesmo. Assim, só me resta agradecer a todos a oportunidade que me facultaram de me conhecer um pouco mais.

Quanto ao elenco, tenho por hábito não particularizar interpretações quando o trabalho é feito por um grupo, pois sei que o resultado, mesmo que eventualmente evidenciando talentos mais apurados do que outros, depende sobretudo da total cumplicidade e capacidade de entrega do conjunto. E, salvo monumental engano de minha parte, imagino que os integrantes desta jovem e talentosa companhia caminharam de mãos dadas ao longo de todo o processo criativo. Portanto, a todos parabenizo e desejo que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando a companhia carioca Teatro Inominável.

Com relação à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as participações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Eleonora Fabião (orientação de direção), Caroline Helena (maravilhosa direção de movimento), Philippe Baptista (direção musical), Leandro Ribeiro (cenário), Ronald Teixeira (orientação de cenário), Isadhora Müller e Marina Daldalarrondo (figurino e visagismo), Desirée Bastos (orientação de idumentária), Davi Palmeira e Thaís Barros (iluminação), José Henrique Moreira (orientação de iluminação) e Verônica Machado (preparação vocal).

SINFONIA SONHO - Dramaturgia e direção de Diogo Liberano. Com a companhia Teatro Inominável. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.

Fonte: http://lionel-fischer.blogspot.com.br/2012/04/teatrocritica-sinfonia-sonho.html

segunda-feira, 16 de abril de 2012

“Dramatorgia”

Foi no primeiro semestre de 2011 que aconteceu no Rio de Janeiro, em Realengo, o primeiro massacre de crianças em ambiente escolar. No romance Precisamos falar sobre Kevin, um dos principais motes dramáticos era justamente o fato do filho de Eva, Kevin, ter assassinado quase duas dezenas de colegas no colégio em que estudava. Por conta dessa coincidência, desisti rapidamente de encenar essa obra e comecei a refletir se aquilo que eu viria a colocar em cena não poderia ser justamente uma resposta ao real, ao invés de simplesmente uma reprodução de suas mazelas. Depois de alguma busca, percebi que eu deveria assumir a criação da dramaturgia, caso ela pretendesse fazer diferença ao que nossa sociedade havia estabelecido como possibilidade. Comecei a me nutrir das discussões junto aos atores e segui especulando a dramaturgia. No início de junho, assumidamente, a dramaturgia ganhou contornos mais precisos depois de tantas tentativas. Por meio de uma colagem de partes variadas das inúmeras referências que cruzaram nosso caminho, junto ao projeto anexei os seguintes materiais: 1) a descrição das personagens; 2) a sinopse do drama; e 3) uma escaleta com um planejamento da sequência das cenas. A seguir, coloco cada um desses materiais seguidos de uma análise com considerações que julgo relevantes de se pontuar.

Personagens

Célia (Adassa Martins) – Filha de Eva e Franklin, irmã de Kevin. Tem sete anos de idade e aos seis, durante um jantar, teve um dos olhos perfurados pelo irmão e, desde então, usa um tapa-olho. Na nova cidade, sofre com a quantidade imensa de cachorros e moradores de rua.

Corley (Andrêas Gatto) – Esposo de Moira e novo vizinho da família de Eva e Franklin. Ignorando por completo o fato de seu casamento estar em crise, Corley presenteia a esposa todos os dias e segue em busca de alguém para dar o presente mais especial de todos: um cão.

Eva (Virgínia Maria) – Esposa de Franklin, mãe de Kevin e Célia. Recém-nomeada diretora da Escola Municipal Ensino Fundamental, Eva acredita estar vivendo um dos momentos mais felizes de sua vida, por todo o reconhecimento profissional que está obtendo.

Franklin (Dan Marins) – Esposo de Eva, pai de Kevin e Célia. Oncologista, especializado no tratamento de tumores, está desempregado. Relutante, se muda com a família para outra cidade em virtude da promoção da esposa. Sofre o fato de seu pai ter sido comido por um câncer.

Kevin (Márcio Machado) – Filho de Eva e Franklin, irmão de Célia. Tem nove anos de idade e num dia, de súbito, acorda convencido de que é preciso virar música. Obstinado em sua busca, transtorna a relação familiar na concretização de seu desejo, que o consome.

Moira (Laura Nielsen) – Esposa de Corley e nova vizinha da família de Eva e Franklin. Vive a crise de seu matrimônio acreditando veementemente que é preciso ter um novo filho. Com a chegada dos novos vizinhos, desenvolve um apego desmedido por Célia e Kevin.

Começo pela escolha dos nomes. A família principal (Eva, Franklin, Kevin e Célia) teve seus nomes retirados diretamente do romance Precisamos falar sobre Kevin. Também do romance eu mantenho a situação do olho perfurado de Célia, algo que na dramaturgia acaba sendo recriado e colocado noutra situação. A família vizinha (Corley, Moira e Tomas) tem seus nomes de lugares mais diversos: Corley vem do sobrenome de uma personagem do romance; Moira surge dos estudos que fiz sobre as tragédias gregas e Tomas foi o primeiro nome que surgiu ao pensar sobre qual nome dar ao filho de Corley e Moira.

Sobre as idades, apenas me importou definir a faixa etária das crianças. De alguma forma são elas as protagonistas da história: Célia, Tomas e Kevin, respectivamente com seus oito, nove e dez anos de idade. Célia e Kevin tem as mesmas idades que dois dos meus quatro sobrinhos. Em processo, a orientadora de direção me pontuou coisas específicas sobre a idade de Célia (7 anos), sobretudo o fato de ser nesta idade – também a de Alice – que a dentição da criança começa a mudar vertiginosamente, mudando também seu comportamento. A partir dessa observação, tentei desenhar uma personagem que começa a se descobrir enquanto pessoa, num movimento de apropriação da linguagem e de seus próprios desejos.

Quanto a distribuição dos papéis, o critério foi também variado. Quanto as crianças e seus respectivos pais, de cara a diferença nas estaturas dos atores me pareceu um dado interessante a ser explorado, sobretudo no caso de Kevin (Márcio Machado) para com Eva (Virgínia Maria) e Franklin (Dan Marins). Márcio é o ator mais alto do elenco e foi a partir desde dado físico que comecei a pensar sobre uma possível engrenagem interessante para a dramaturgia: a de que as personagens infantis iam se adultizando e os adultos se infantilizando. Ao término do espetáculo, a altura de Kevin não me parece tão despropositada, bem como a de sua mãe, que por ser bem menor que ele, me dá por inteiro o caráter pusilânime de tal personagem. Sobre Tomas, ressalto o fato curioso de ter percebido a necessidade desta personagem somente após ter escrito a sinopse e escaleta das cenas.

TOMAS (Gunnar Borges) Filho de Corley e Moira. Tinha sete anos quando, durante os preparativos para seu aniversário, acabou subindo aos céus levado por balões. O corpo de Tomas é encontrado uma semana depois que os novos vizinhos chegam a sua nova casa, explodindo a realidade dentro da qual as duas famílias tentavam se equilibrar.

Tomas, a princípio, seria apenas citado como o filho morto de Corley e Moira. Em discussão com a orientadora, a infância foi se revelando o cerne do espetáculo. Por isso Tomas ganhou corpo físico e dramatúrgico, para que possibilitasse mais desdobramentos sobre a infância. Célia, Tomas e Kevin são alvos da violência e inconsequência humana. Mais que isso: não sofrem abusos diretos nem agressões premeditadas de algum assassino. Em cena, são três crianças arrasadas pela indiferença e pela inconsequência, pela falta de responsabilidade e humanidade. Mais do que temas como pedofilia, por exemplo, me interessou desbravar a criança como propagadora da violência. A criança como ser que é lançado em situações que não deveriam lhe ser dadas e que diante ao horror desse encontro, age a violência como forma de assegurar sua sobrevivência. Talvez pior que a violência sobre uma criança seja a violência realizada por ela mesma. Talvez pior do que uma criança que propaga inconscientemente a violência, é pensar que esta consciência possa estar sendo criada por ela e que o ato violento possa ser intencional e arquitetado.

Cada personagem tem uma ou outra característica retirada do e-mail resposta que cada ator me enviou quando solicitei a eles uma lista de seus desejos mais desejados. Exemplos: sofre com a quantidade imensa de cachorros e moradores de rua; e segue em busca de alguém para dar o presente mais especial de todos: um cão. Ao transitar entre as personagens tais buscas, acreditei ser possível humanizá-los ainda mais, dotando-os de desejos possíveis ou, ao menos, reconhecíveis. Os dois exemplos citados acima se perderam no decorrer do processo, porém, até serem abandonados serviram como mote para a criação das personagens. Volto ao cuidado de não intencionalizar excessivamente as vontades criativas. Essa foi a maneira encontrada para lidar com os desejos enviados pelos atores. Eles estão muito presentes no espetáculo, porém, de maneiras por vezes sugeridas, quase invisíveis. Uns viraram discurso direto das personagens, outros desejos viraram intenção ou mesmo tema de alguma cena.

Sinopse

Tudo acontece em uma semana. Da noite de um domingo à noite do domingo seguinte. Eva e Franklin acabam de chegar a sua nova casa, alugada. Eva foi promovida a diretoria da Escola Municipal Ensino Fundamental e no domingo em que chegam nesta nova casa, é aniversário de Célia, filha mais nova do casal.

No correr da semana, Eva mantém-se presa ao trabalho enquanto seu marido, Franklin, passa os dias levando os filhos à escola e os buscando, incapaz de abrir as caixas da mudança. É durante a semana que os vizinhos se conhecem. Corley e Moira, família vizinha, convidam Célia e Kevin para brincar em sua casa, no fim de semana.

Numa manhã de terça-feira, Kevin, o filho mais velho de Eva e Franklin, acorda convencido de que é preciso virar música. De noite, com a família reunida para o jantar, ele faz seu pronunciamento: mãe, quero ser música. Eva trata de pôr fim a sua brincadeira e naquela noite Kevin não consegue dormir, com olhos abertos, sonha em ser sinfonia.

Passamos, então, a acompanhar as tentativas de Kevin para efetivar o desejo que o consome. Nos dias posteriores, ele consegue convencer o próprio pai e a irmã de que é preciso ser música. Enquanto Eva trabalha desesperadamente na resolução do massacre que assolou sua Escola, as crianças cada vez mais adentram a casa dos vizinhos, entretidos com o quarto cheio de brinquedos do filho deles que nunca viram.

Final de semana. Todos em suas respectivas casas. Hora do noticiário. Descobre-se o paradeiro do filho de Moira e Corley que até então, imaginava-se, estar por vir. Moira não está grávida. E o desejo de Kevin não é mera brincadeira de criança. As paredes tremem e a intimidade se converte em sutura. Kevin, no meio do furacão, vira, enfim, música.

A sinopse entregue junto ao projeto tentava, de alguma forma, propor espaços que pudessem ser dinamitados no processo de criação textual. Foram muitos lugares mais sugeridos do que determinados. Por exemplo, por conta do estudo sobre as tragédias gregas (sobretudo a partir de Édipo Rei de Sófocles), optei que a dramaturgia sustentasse uma sucessão muito acelerada de acontecimentos. Por meio dessa vertiginosidade eu acreditava ser possível o trágico poderia emergir. Assim, desenhei uma sequência de cenas que aconteciam durante uma semana, ou seja, durante pouco tempo todas as mudanças de sorte aconteceriam. Ao mesmo tempo, alguns personagens tiverem seu percurso simplificado a uma única ação, por exemplo, Eva (sempre atarefada com as coisas de seu novo emprego) e Franklin (amortecido pela morte do pai). Detalhes como o aniversário de Célia serviram, sobretudo, para dar a dramaturgia espaço para construir jogos que evidenciassem melhor a relação entre as personagens. Pensei que não fazia sentido apresentar uma personagem, mas sim mostrá-la quando em situação, quando em ação dentro de um dado acontecimento.

O encontro das duas famílias foi construído de maneira muito diferente do que a sinopse sugeriu. Muito cedo, Andrêas e Laura (respectivamente, intérpretes de Corley e Moira) desdobraram o horror de suas personagens para um grau até então não previsto em nenhum planejamento do drama. Foi preciso acompanhar sua guinada, portanto, hoje analisando a peça escrita, percebe-se como esta família vizinha esteve mais fechada – quase de luto – e como sua abertura foi sendo aos poucos realizada. É Corley quem conhece o vizinho Franklin, enquanto Moira espia as crianças vizinhas indo para a escola. Eva e Franklin, por exemplo, nem chegam a conhecer Moira. Conforme escrito no capítulo Projeto de Encenação, muitas coisas foram abandonadas, porém outras serviram imensamente. Como exemplo deste aproveitamento, cito o pedido de Kevin (mãe, quero virar música) e a consequente bronca que Eva dá em seu filho. É por conta dessa reação da mãe que Kevin adormece e acaba, em seu sono, tendo um pesadelo. Neste pesadelo, eu pensei, por que não tornar possível algo que em vida Kevin parece não conseguir dar conta? Voltando ao projeto, o sonho de Kevin age como exemplo direto do quarto vértice no triângulo familiar e oxigena a sua existência.

Conforme escrito anteriormente, durante nosso processo aconteceu em Realengo um primeiro massacre de crianças em ambiente escolar. Na época eu tentei não dar muito atenção ao fato em virtude do horror que o mesmo fez emergir. Eu me lembro de ter recortado todos os jornais que pude, incapaz de assistir a vídeos e reportagens. Isso ficou durante um bom tempo dentro de um envelope, ao lado da minha cama. E ao escrever a sinopse, eu percebi que precisava de um bom motivo para que as crianças – Célia e Kevin – pudessem cada vez mais adentrar a casa dos vizinhos (já que intuia que Moira seria a detonadora de alguma tragédia final). Foi neste ponto em que o massacre me deu motivo para colocar as crianças de férias. Porém, eu descobriria adiante, mais que isso: o massacre deu toda a tônica da dramaturgia e a encenação (e isso tudo, apenas porque no princípio, o massacre pôde ser apenas um detalhe e não o centro das atenções).

De maneira diferente, o virar música de Kevin sempre foi um mote e um problema. No projeto eu digo algo como ser essa a busca não só da personagem como também de toda a equipe de criação. Durante os primeiros ensaios, fizemos seminários a partir do tema O que é virar música? Especulamos muitas possibilidades, das mais fantasiosas as mais científicas. Mas foi depois de um sonho que tive que a coisa amanhaceu esclarecida: não cabia tanto investir na metáfora do virar música. Isso deveria ser algum desdobramento e não a coisa em si. Quero dizer: é óbvio que virar música é um chamariz poético da peça, mas para Kevin – uma criança de nove anos – isso seria melhor enquanto jogo e não feito metáfora. Foi por conta do título Peça de Formatura, imaginado durante a feitura do projeto de encenação, que eu comecei a desbravar que, na verdade, todo esse desejo de Kevin – o de virar música – havia sido criado por conta de uma peça teatral que ele começou a ensaiar em sua nova escola. De acordo com a postagem sobre o título [1], destaco:

[...] eu não sei. penso em PEÇA DE FORMATURA e algum gesto delicado se anuncia. quer dizer, todo o drama, toda a coisa parte por conta disso. vamos por parte: célia se matricula numa nova escola e das coisas todas que mais chamam a sua atenção está esta: qual peça de formatura faremos para encerrar o ano letivo? kevin da mesma forma aguarda ansioso, porém discreto, por saber qual teatro encerrará seu ano letivo. e o que fará nele? a presença do teatro como ferramenta de construção e criação não somente da ficção mas da própria vida. um mundo, país, comunidade na qual esta experiência tivesse força e mais que isso, já fizesse parte da ousadia que é o virar dos dias. [...]

A escrita vai se escrevendo e por vezes só precisa das suas mãos para aparecer. Você digita e digita e as palavras vão saltando ansiosas por expressão. Engraçado que durante a escritura da sinopse, as palavras sinfonia e sonho apareceram e só mais tarde vieram a se transformar no título do espetáculo. Foram muitas tentativas: Mãe, quero ser música; Peça de formatura e, por fim, Sinfonia Sonho. Na sinopse, é previsto que a dramaturgia acompanhe o movimento de Kevin na tentativa de virar música, porém, tal como a dramaturgia se configurou, o que temos é uma espécie de refrão (conforme identificado pela orientadora de direção) – um leitmotiv – pelo qual Kevin, sempre trancado em seu quarto, se questiona sobre tudo aquilo que o atormenta e impede de contemplar seu desejo: o de virar música.

Escaleta Primária

Domingo – FESTA CÉLIA

Noite de domingo. Eva e Franklin acabam de chegar a sua nova casa, alugada. É aniversário de Célia, filha mais nova do casal. Eles improvisam uma festa para a filha, ainda enjoada da longa viagem que tiveram de carro. Todos colocam tapa-olho, como fosse o tapa-olha uma espécie de chapeuzinho. Mas a festa de Célia não dá certo mesmo assim. Recém-mudados para uma nova cidade, a família não tem a quem convidar, o aparelho musical não funciona e a festa acaba sem música. Célia faz pirraça enquanto Kevin a observa, atento e desolado.

Segunda – OS VIZINHOS

Manhã de segunda-feira. Eva foi promovida à diretoria da Escola Municipal Ensino Fundamental e por isso parte veloz para o trabalho. Franklin leva os filhos à mesma escola e os busca, horas depois, incapaz de abrir as caixas da mudança. Nesta tarde, Franklin, conhece os vizinhos, que convidam Célia e Kevin para brincar em sua casa, no fim de semana.

Terça – O PRONUNCIAMENTO

Manhã de terça-feira. Kevin, o filho mais velho de Eva e Franklin, acorda convencido de que é preciso virar música. Vaga o dia tramando sua ação. Sem rumo, já de noite, com a família reunida para o jantar, ele faz seu pronunciamento: mãe, quero ser música.

Quarta – SINFONIA SONHO

Noite de quarta-feira. Kevin segue sem compreender, mas caminha repleto do seu desejo. Ele nele persiste. Mas Eva, após o jantar, trata de pôr fim a brincadeira de seu filho e naquela noite Kevin não consegue dormir. Com olhos abertos, ele sonha em ser sinfonia. No sonho, o desejo de Kevin dança trepidante sobre a impossibilidade determinada pela mãe.

Quinta – MASSACRE LOCAL

Manhã de quinta-feira. Massacre na Escola Municipal Ensino Fundamental. Eva enlouquece. As aulas são interrompidas e Franklin volta para casa, com as crianças, sôfregas de horror. Certos impossíveis são mais possíveis do que imaginamos, Kevin talvez venha a pensar. Passamos então a acompanhar as tentativas de Kevin para efetivar o desejo que agora, ainda mais, o consome. Kevin convence Célia de que precisa virar música. Célia se empolga com a possibilidade do irmão ser famoso.

Sexta – NÃO-DIVISÃO CELULAR

Manhã de sexta-feira. Kevin convence o próprio pai de que é preciso virar música. Enquanto Eva trabalha desesperadamente na resolução da tragédia que assolou sua escola, as crianças cada vez mais adentram a casa dos vizinhos, entretidos com o quarto cheio de brinquedos do filho deles que nunca viram.

Sábado – O BALÃO

Noite de sábado. Todos em suas respectivas casas. Hora do noticiário. Para além da tragédia na Escola, outra criança é encontrada morta. É o filho de Moira e Corley que até então, imaginava-se, estar por vir. Moira não está grávida. E o desejo de Kevin se enerva até o limite.

Domingo – DEUS EX-MACHINA

EVA – É um desejo de morte, filho?

KEVIN – Não, mãe, é só de eternidade.

EVA – Mas não é possível ser eterno, eu já lhe falei. Nem é possível ser música.

KEVIN – Mas, veja: eu estou sendo. Olha, eu tô sendo música.

Kevin, no meio do furacão, vira, enfim, música.

A criação desta escaleta foi determinante para que a dramaturgia pudesse florescer. Eu, de fato, me guiei por essa estrutura primária. Naturalmente, a cada cena escrita as coisas se modificavam e desdobravam aquilo previsto no modelo acima. Algumas cenas foram completamente novas e pouco se serviram do que fora previsto. Isso nunca foi um problema porque o propósito da escaleta foi sobretudo o de criar um encadeamento dos acontecimentos, provocando analogias entre as partes do espetáculo e um desenho firme de cada personagem, de cada trajetória.

No início, a dramaturgia foi prevista para ser criada em processo colaborativo. Isso não chegou a acontecer. Comecei a escrever o texto após cerca de doze ensaios com o elenco. Nestes primeiros ensaios, tudo o que produzimos já foi a partir dessa primeira estruturação dramatúrgica entregue junto ao projeto. Nesses ensaios, fomos alargando as personagens e abandonando algumas características em troca de outras, novas. O corpo dos atores – de fato, a sua fisicalidade – foi essencial para tornar essas figuras mais humanas. Alguns dramas previstos no papel eram menores quando postos em cena, ou nem isso, alguns dramas eram mais cômicos do que trágicos. Todo esse movimento foi me afetando enormemente, mesmo que não houvesse uma consciência disso.

Sem saber ao certo explicar o porquê, o texto de Sinfonia Sonho foi escrito em apenas um mês, outubro de 2011. Entreguei as três primeiras cenas (Festa Célia + Os Vizinhos + O Pronunciamento) no ensaio da quinta-feira 06 de outubro e neste mesmo dia, agendei a data das próximas entregas de texto. Na quinta-feira 20 de outubro entreguei mais duas cenas (Sinfonia Sonho + Massacre Local), ao contrário das três que haviam sido planejadas. E no ensaio da quinta-feira 03 de outubro, terminei de entregar as cenas pendentes (Não-Divisão Celular + O Balão + Deus Ex-Machina). No meio dessas entregas, também entreguei páginas que organizavam as cenas em três atos (sugestão da orientadora de direção).

Creio ter sido importante estabelecer tais prazos para que toda a equipe pudesse se guiar. Assim como os atores tinham novos textos para decorar, todos tínhamos novas cenas para estruturar. Tais prazos me obrigaram a sentar e escrever e quase todas as cenas foram escritas com quase nenhuma antecedência. Sempre houve um medo meu de encarar a escritura, sobretudo quando as ideias daquilo que era preciso constar em cada cena iam se clareando de maneira irrevogável. Quer dizer: quanto mais eu demorava a escrever, mais a cena se escrevia sozinha em minha cabeça.

Alguns dogmas, se é que assim podem ser chamados, tornaram a criação da dramaturgia de fato um jogo a ser jogado. Destaco duas regras que me obriguei a seguir: 1) cada cena teria um título composto por duas palavras; e 2) as falas das personagens sempre que possível deveriam ter o tamanho máximo de uma linha quando digitadas. Tais regras, respectivamente, me deram um olhar mais amplo sobre as temáticas em jogo, sobre aquilo que de fato configurava o núcleo da cena e, por último, me permitiram certa fluidez do texto, certo andamento determinante a uma dramaturgia que se quisesse vertiginosa.

Em se falando de gênero, conforme já exposto, encaro Sinfonia Sonho como uma tragédia dita contemporânea. Há uma série de insinuações a certa lógica trágica que não tenho plena consciência, mas que se manifestam independente da minha vontade. Intencionalmente, assino a vertigem dos acontecimentos, numa sucessão muito rápida de eventos: a chegada na nova cidade, apresentação das personagens, os vizinhos, o pronunciamento de Kevin, o seu pesadelo, o massacre na escola, o encontro de Moira com as crianças, a pira de Eva, a morte de Tomas, a partida de Franklin, o sequestro de Célia e a morte de Moira. Ao mesmo tempo, é divertido brincar com a cegueira de Célia porque ela, inevitavelmente, sugere alguma ou qualquer relação com o mito de Édipo.

Sobre esta personagem, Célia, a irmã de Kevin, há um detalhe especial: desde o início me pareceu necessário provocar uma identificação imediata com o público. Talvez porque soubesse que o final da peça fosse explodir por sobre as crianças. Estas sim sairiam da peça destruídas, violadas. Assim, Célia se tornou uma personagem divertida e autêntica e quando vemos a peça engolir tal personagem para dentro de uma sequência de acontecimentos trágicos, o que sentimos tem a ver com a tal catarse desenhada por Aristóteles em sua Arte Poética. Por meio dessa personagem e da tragédia que a arrasta, sentimos terror e piedade, num movimento que purga em nós essas energias. Obviamente que isso não está dado. Aqui desenho em palavras apostas e buscas que ainda não cessaram de acontecer, de se testar e desdobrar em novas tentativas e possibilidades.

Pontuo estes vários pedaços porque foi por meio dessa bricolagem, eu digo, desse somatório de pequenas partes, pequenas tramas e desejos, que a dramaturgia pôde enfim nascer, marcada por uma riqueza de temas e discussões, uma dramaturgia que eu julgo marcada pela diferença. Durante o processo, recortei muitas notícias de jornais. Ao criar as cenas, retomei o estudo de algumas, tais como a notícia do tratamento de células cancerígenas com a frequência da sinfonia de Beethoveen e como os depoimentos obtidos após o massacre em Realengo. Essa diferença dos discursos, talvez, me faça acreditar num possível motivo que explique o grande alcance que o texto pareceu ter nas três apresentações dentro da XI Mostra de Teatro da UFRJ. Ao reunir os temas, as situações e questões vividas por cada personagem, damos conta de uma parcela muito grande de indagações que também, imagino, os mais diversos espectadores podem se questionar. Afinal, é de se esperar que nossos espectadores saibam o que é isso de filho, pai e mãe. O que é isso de infância e idade adulta. Eles sabem o que é isso de violência e morte. São temas universais tratados num contexto específico. A dramaturgia como encadeamento que nos traz de volta a nós mesmos, porém por caminhos ficcionais.

Em termos conceituais da dramaturgia, estive o tempo inteiro – quase em silêncio – flertando com o conceito de corpo sem órgãos, proposto em O Anti-Édipo. Durante o início de 2011, ainda quando em pesquisa junto aos atores, chegamos a um sério questionamento: seria a experiência teatral ela mesma um corpo sem órgãos? Se sim, apresentamos nesse sentido uma realidade inóspita e ligeiramente impraticável. Em cena, temos uma realidade improdutiva sem, no entanto, deixar de ser, de estar e existir. Uma realidade que funciona por si própria e esmaga a ação das personagens que nela tentam se mover. De forma sutil, acredito que o espetáculo proponha uma experiência que nos chama de volta ao absurdo da existência, no sentido de sua cegueira e automatização contínua, que retira de nós o controle e a vivência de nossos atos e relações. O exemplo maior de tal aposta talvez resida na presença das rubricas no último ato do espetáculo e, sem dúvida alguma, da forma construída para sua expressão. São rubricas que desenrolam a ação de forma violenta e vertiginosa, de forma quase cega e espetacularizada. Para isso, duas repórteres assumem as rubricas, narrando ao público a vertigem de eventos vividos pelas personagens que nem mesmo elas próprias parecem acompanhar. Cria-se algo impraticável, uma ação que nos devolve – de alguma forma – certa falência relacional das partes que componhem aquela realidade ali compartilhada. Assim creio, Sinfonia Sonho preocupa-se em abrir este reconhecimento trágico da realidade contemporânea, não para reproduzí-lo, mas para denunciá-lo, para trazer a discussão seus protagonistas e seus respectivos alvos. Esse improdutivo oferecido ao público, esse final desfórico do espetáculo, me parece querer afirmar que a absurdidão da nossa existência não somente existe como por vezes é fruto da nossa inconsequência.

Por fim, chamo de dramatorgia uma busca que se dá além do texto dramático. Neste neologismo, junto as palavras dramaturgia + ator + orgia para tentar dar conta de um jogo que se contrói a muitas mãos. Quero dizer: a dramaturgia – como a vejo – é um emaranhado de vozes, discursos e tentativas. É uma orgia no sentido caótico do encontro das diferenças. É também o ator, concentrado e multiplicado. Dramatorgia no sentido de tê-los – os atores – em mim reunidos, de pensar a cena para suas vozes e corpos, de querer colocá-los em situações que me pareçam interessantes de colocá-los, para multiplicar sua potência em expressão. A dramatorgia como percurso da fruição nossa e do espectador. Como materialidade feita de corpos e não somente de palavras.


[1] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/09/sobre-o-titulo.html;

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Capítulo 7 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro

terça-feira, 10 de abril de 2012

SINFONIA SONHO estreia nesta sexta 13 de abril no RJ

Após três apresentações integrando a Mostra Paralela Fringe, do Festival de Curitiba, o novo espetáculo do Teatro Inominável chega aos palcos do Rio de Janeiro para cumprir curtíssima temporada. De 13 a 22 de abril, sexta a domingo, o espetáculo com dramaturgia e direção de Diogo Liberano se apresenta no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto. As apresentações são sempre as 21h (sextas e sábados) e 20h (nos domingos). O valor do ingresso inteira é r$ 20,00 e a meia-entrada, r$ 10,00.

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“Sinfonia Sonho faz terror com vizinhança em caos”

CURITIBA (PR) - Uma investigação teatral que passa, em primeira instância, por um trabalho feito a partir do corpo do ator e para ele. Assim é o espetáculo cariocaSinfonia Sonho, apresentado na mostra paralela Fringe, no Festival de Curitiba.

O grupo Teatro Inominável apresenta a montagem com dramaturgia e direção inventiva de Diogo Liberano, que originou o projeto em seu trabalho de formatura em direção teatral na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Com a presença do próprio diretor e autor em cima do palco, na pele do narrador, a obra conta a história de dois casais vizinhos. Um deles tem um casal de crianças, o outro, sofre a frustração de um filho perdido acrescida da ilusão de uma gravidez psicológica na qual embarca a mãe sem filho. O enredo faz referência também ao caso que ficou conhecido como Massacre do Realengo, quando um atirador psicopata matou 12 crianças de uma escola do bairro carioca.

No elenco, Adassa Martins se sobressai com uma interpretação segura e carismática da filha caolha, Célia, que perdeu um dos olhos em um “acidente” com o espeto do fondue provocado pelo irmão, Kevin, interpretado por Márcio Machado, também em entrega destemida ao personagem.

Ainda compõem o conjunto de atores Andrêas Gatto, Dan Martins, Flávia Naves, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Nastássia Vello e Virgínia Maria.

Apesar do cenário simplório, formado por sete cadeiras, a montagem cria sua própria convenção teatral, com estética bem definida, à qual o público embarca.

A peça abusa de poesia para exibir, em pequenos recortes, o absurdo que o tempo todo passa pelo humano, mostrando toda crueza que pode ser escondida entre as quatro paredes das habitações de uma vizinhança supostamente feliz e normal. Coisa que (quase) ninguém é.

A violência sempre pode estar por ali, apenas dormente. A obra poderia ganhar ainda maior força se a dramaturgia/direção optasse por cortes precisos no sentido de ficar mais enxuta e impactante.

Mas, como avisa o próprio diretor e dramaturgo no programa do espetáculo, Sinfonia Sonho é “um terror” do qual ninguém precisa mesmo gostar. Porque nem tudo nesta vida precisa ser “legal”. Porque, às vezes, não é mesmo.

O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Curitiba.

Sinfonia Sonho
Avaliação: muito bom
Quando: sábado (7), às 18h; e domingo (8), às 21h (últimas apresentações)
Onde: Teatro José Maria Santos (r. 13 de Maio, 655, Curitiba)
Quanto: R$ 23
Classificação: 16 anos

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Crítica de Miguel Arcanjo Prado publicada em 07/04/2012 [http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/2012/04/07/sinfonia-sonho-faz-terror-com-vizinhanca-em-caos-teatro-inominavel-festival-de-curitiba/]

quarta-feira, 4 de abril de 2012

“Paternidade devidamente dividida”

[...] está para acontecer. são 13h50 e marcamos para 15h. estou terminando de juntar papéis, vontades e sonhos embrulhados para abrir aos meninos do elenco algumas questões que me são essenciais e que por isso mesmo devem ser fatiadas e degustadas com prazer. não gente, sem prazer não dá nem para sair de casa (nesse calor). tem quer ser com muito tesão e vontade. vamos lá: referências, texto impresso, agenda para marcar próximos encontros. no caderno meu, aquele que fiz encadernando 100 folhas em branco, a última escrita foi no dia 17 de janeiro. eu de fato me dei férias quando percebi que quero ir junto mesmo, sem anteceder dentes. sem anteceder desejos e fomes minhas, solitárias por vezes. portanto, hoje tudo começa. hoje tudo ao mesmo tempo [...] [1]

O trecho acima está na postagem Encontro Um, publicada no domingo 13 de fevereiro de 2011. Já em fevereiro, comecei a realizar encontros periódicos com o elenco. O objetivo principal era se encontrar para discutir a filosofia de Deleuze e Guatarri. Cada ator recebeu por correio o capítulo As Máquinas Desejantes. Nossos encontros foram evoluindo lentamente por pequenos trechos deste capítulo. No blog, fichamentos dos encontros registravam opiniões e questões debatidas. Nesta época, cursando a disciplina de Projeto, eu acabava gastando com o elenco algumas questões que, porventura, estivessem se mostrando pouco sensíveis ao desdobramento criativo.

Uma questão que me procupou durante nossos encontros foi, justamente, não exceder o corpo de referências. A cada debate muitas referências surgiam, ma nunca houve a pretensão nem sequer o interesse em debatê-las. Já tínhamos uma referência base que era extremamente complexa, de forma que não me pareceu interessante somar outras mais a discussão. O que fiz foi trazer a cada ator um corpo narrativo contra o qual rebateríamos os conceitos estudados. Assim, sorteamos cerca de 100 postagens do blog Lendo Árvores e Escrevendo Filhos para cada ator. O que chamo de “corpo narrativo” seria justamente aquilo que um poema poderia trazer a cada ator: um contexto específico e autônomo, produzido de maneira dissociada do nosso espetáculo. Tal corpo seria um espaço sobre o qual lançaríamos questões e desdobraríamos nossas discussões. Um corpo narrativo ou, em outras palavras, uma espécie de exemplo (que servia de corpo as nossas indagações). Mais que isso, com o debate a partir das poesias, começamos a intuir personagens e situações dramáticas. Foi pela análise do blog que encontramos, por exemplo, o verso mãe, quero virar música, que acabaria sendo central a nossa ficção. A partir do blog – e dos sorteios aleatórios – cada ator encontrou desdobramentos possíveis para a trajetória de seu personagem, ainda pouco estruturada. Durante estes encontros, estive atento para colher tais fagulhas e seguir reunindo tais pedaços pois saberia que a qualquer momento eles seriam necessários.

A própria linguagem poética, repleta de figuras de linguagem muito específicas, começou a ser discorrida em nossos encontros. Como a dramaturgia seria escrita por mim, me pareceu também importante colocar os atores em contato com a minha maneira de escrever. Não que esta fosse única e imutável, mas sem dúvida alguma já se configurava como um dado tipo de escritura. Quais palavras? Quais tempos? Como os verbos se conjugam e com quais cores e intenções? Sempre tive receio de fazer dramaturgicamente uma peça intragável por conta de algum excesso poético. Com Sinfonia Sonho busquei tornar possível a poesia e com algum tempo de processo, fui percebendo que para tal “bastava” não fazer força nem exceder a minha intenção. Durante os encontros com os atores, fui testando possíveis sinopses apenas para sondar a recepção de cada um. Desde sempre, a opinião do elenco sobre o desenrolar da dramaturgia foi determinante. Em diálogo, fomos desdobrando inúmeros lugares juntos (sem que eu desse fim ao mistério que era justamente saber qual ficção colocaríamos em cena). Consta no projeto:

Este projeto deseja dar corpo às metáforas, somando teatralidade à realidade. Deseja-se olhar para o real por um ponto de vista que seja capaz de desprender do cotidiano certa poesia, alguma teatralidade. Interessa-me criar este espaço outro no qual eu, espectador, me veja sendo movido e talhado, refeito e aprimorado. Uma realidade frente a qual eu exija de mim certa auto-análise, uma realidade que me devolva a mim mesmo via diferenciação e não via espelhamento.

Em nosso primeiro encontro, eu deixei bem claro qual era o propósito de nosso encontro. Tratava-se de um caso de Paternidade devidamente dividida (PDD). Quer dizer: eu havia escolhido aquelas pessoas para dividir comigo a responsabilidade sobre um novo filho. Sinfonia Sonho (que ainda não tinha sexo nem corpo quiçá nome) era um filho de muitos pais. É sempre assim com as coisas que crio. Mas agora era ainda mais especial, porque a princípio o projeto se estruturava a partir dessa confusão criação e vida, artista e pai, filho e obra. Na postagem intitulada sonho, eu tento descrever um sonho que tive um pouco depois de nosso primeiro encontro:

Márcio, Virgínia, Daniel, Laura e Adassa,

O que eu tenho para contar a vocês é o meu sonho. Eu diria o meu filho. Eu acabei de acordar, é sério. É muito estranho. Eu estou diante do computador. Tem uma caneca com leite muito gelado. Um pote com biscoitos de damasco sem açúcar e três passatempos (eu comi já um) recheados. Estou hipoglicêmico (acabei de medir a minha glicemia, sou diabético, deu 46). Ou seja, estou trêmulo e nervoso, porque não sei se consigo acreditar em tudo o que aconteceu em menos de cinco minutos. E seria bom que eu conseguisse acreditar, porque aconteceu.

Aos poucos escrevendo, eu acho que vou perdendo o incrível da coisa. Mas é que eu sonhei com a gente. E estar hipoglicêmico faz com que as coisas não se distinguam muito. Por isso a sensação de ainda estar sonhando. Eu acordei com essa frase na cabeça "Márcio, Virgínia, Daniel, Laura e Adassa, o que eu tenho para contar pra vocês é o meu filho" [...].[2]

Com a frequência dos encontros, começamos a discutir outros assuntos para além da referência principal. Começamos a especular sobre os temas e fomos, juntos, tomando decisões. Por exemplo: decidimos que não iríamos colocar em cena uma peça que falasse sobre teatro. Não queríamos uma peça que falasse ela mesma de sua própria criação. Queríamos brincar de ficção, construir personagens e por meio disso narrar um acontecimento que se assentasse numa lógica familiar. O filho como filho e não como obra. Passado o processo, hoje percebo que a multiplicidade do tema “criação” se mantém em nosso espetáculo: em cena um drama familiar, ao mesmo tempo que criacional em termos artísticos. Kevin que é filho é também uma criança em movimento por conta da peça teatral que ensaia em sua escola. Há a criação artística, porém, é como se não tivéssemos consciência dela: ela é saldo de uma estrutura anterior, basal, familiar.

Aos poucos o processo foi desembocando no todo, mas tudo sem imposição nem força. Não foi o caso, em momento algum, de selecionar aquilo que aconteceria e que precisaria virar cena, dramaturgia ou intenção. As coisas vão e voltam num processo, estão em movimento e livre cruzamento. Não é preciso intencionar tanto assim. Após inúmeros encontros, tivemos cerca de um mês de intervalo até o início dos ensaios. Nesse tempo, finalizei o projeto e dei conta da produção necessária para a realização dos ensaios, além de também fechar o desenho “final” das personagens, sinopse e escaleta de cenas.

Cabe pontuar que o elenco que julgava fechado desde o fim de 2010 acabou sofrendo modificações. Logo no início dos encontros, o ator Daniel Carfa teve que se retirar do projeto por indisponibilidade de tempo. Em seu lugar, convidei Dan Marins, integrante do Teatro Inominável e com o qual eu havia trabalhado em Não Dois, minha montagem de Direção V. Com cinco atores (Adassa Martins, Dan Marins, Laura Nielsen, Márcio Machado e Virgínia Maria) achei que o elenco se completaria, mas após um encontro com o amigo Andrêas Gatto, acabei convidando-o também. Assim, o elenco principal estava composto por seis atores. Mas um processo é mesmo movimento. No decorrer, eu viria a perceber que uma personagem que a princípio era apenas mencionada, precisaria estar ali, em ação perante a audiência. Para tal, convidei o ator Gunnar Borges, que já havia manifestado interesse em participar do projeto e que assumiu também a produção da peça, como aluno da disciplina Legislação e Produção Teatral. Borges ensaiou bem menos que o restante do elenco (escolha feita por conta da própria constituição da sua personagem). Por último, duas semanas antes da estreia, precisei trazer outras duas atrizes do Inominável para a completar a cena: Flávia Naves e Helena Cantídio (atrizes da montagem Vazio é o que não falta, Miranda) interpretaram, respectivamente, as repórteres Carolina Wellerson e Joana Bravo. Ao todo, nove atores em cena.


[1] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/02/o-primeiro-encontro.html;

[2] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/02/sonho.html;

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Capítulo 6 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.

SINFONIA SONHO em Curitiba <<<

SINFONIA SONHO no Festival de Curitiba