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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

“A necessidade da ficção”

O início do processo foi apenas leitura, levantamento e abandono de referências. Cuidei de ler repetidas vezes o capítulo eleito referência inaugural. Trata-se de um texto filosófico repleto de referências externas as quais, em sua maioria, eu não conhecia. De setembro a dezembro de 2010, As Máquinas Desejantes foi comigo para todos os lados. A leitura se repetia mais pela minha incompreensão do que por outro motivo. Como é possível essa obra me prender nela mesma se eu nem sequer a compreendo? Eu me fazia essa pergunta, porque fazia tempo que eu não tinha essa relação com outra obra, qualquer que fosse. E então eu segui lendo e me lançando por sobre todas as referências que O Anti-Édipo me apresentava. Destas, destaco aquelas que foram determinantes: a obra O Pensamento Selvagem, de Claude Levi-Strauss e a obra Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber. Com a obra de Levi-Strauss, o conceito de bricolagem se apresentou e, de imediato, se mostrou determinante ao processo. Naquele momento, bricolagem se resumia ao jogo de colar partes distintas e não necessariamente combinantes. Pensar este conceito me estimulava a seguir juntando elementos que, mesmo distintos, me capturavam a atenção. Da mesma forma eu juntei este conceito ao processo e acreditei que ele pudesse revelar sua serventia no decorrer da criação. Já pela obra de Schreber, Deleuze e Guattari evidenciam um caso agudo de esquizofrenia, tema presente no subtítulo de O Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia 1. Schreber foi a pessoa/personagem a partir da qual os dois filósofos desenharam a lógica do homem como alguém naturalmente esquizofrênico, ou seja, como aquele que está em profunda relação com tudo ao seu redor.

Em outubro de 2010 eu criei o blog do espetáculo[1], visando juntar nele tais referências e as primeiras reflexões a partir destes encontros. Ao mesmo tempo em que lia tais livros, estive também atento aos jornais, recortando notícias que me parecessem interessantes e prenhes de dramaturgia. Era dezembro de 2010 quando numa outra livraria, me percebi segurando livros muito pesados (em todos os sentidos). Tinha uma obra de Freud, outra de Carl Gustav Jung, outra de Friedrich Nietzsche e, por último, outro livro de Deleuze. Lembro-me que apoiei os livros numa bancada e ali os abandonei, exigindo-me comprar um romance, para ler outra coisa que não mais conceitos e filosofia. Foi então que me lembrei da capa de um livro que eu sequer lembrava o título. Revirando prateleiras encontrei perdido um único exemplar do romance Precisamos falar sobre o Kevin, da escritora norte-americana Lionel Shriver. A capa, gravada em minha memória, apresenta a imagem de uma criança de pé numa estrada de terra, vestida numa calça jeans com camisa de manga comprida e tênis. Por sobre o seu rosto, porém, ao invés de um gesto infantil há a face de um lobo. Essa imagem, durante anos, me instigou sem que eu nem soubesse do que se tratava o romance.

Precisamos falar sobre o Kevin é um romance que reúne cartas de uma mãe, Eva, a seu marido, Franklin. Eva é mãe de Kevin, mais velho e Célia, nascida depois. Um pouco antes de completar 16 anos, Kevin comete um massacre em sua escola, assassinando cerca de duas dezenas de pessoas, entre amigos de classe, funcionários da escola e professores. O romance parte da seguinte premissa: é possível odiar o próprio filho? Num misto de fatos reais e ficção, Shriver traz a tona temas e questões que, tão logo eu li, rapidamente soube que não teria mais como deles me ausentar. Comprei o livro e junto ao O Anti-Édipo passei o fim de ano entre uma obra e outra. E eis que o tal romance rebateu durante todo o momento aquilo que eu vinha lendo na obra de Deleuze e Guattari. Era como se o romance, por inteiro, fosse um exemplo claro dos conceitos criados pelos dois outros autores (sobretudo “máquinas desejantes” e “corpo sem órgãos”).

Ainda era dezembro e eu já me percebendo ansioso para encontrar alguma dramaturgia na qual aportar. As ideias se multiplicavam dia após dia e no blog eu registrava o nascimento e a morte de inúmeras certezas. Em uma semana, antes mesmo do fim do ano, eu já havia convertido todo o romance em dramaturgia. Foi um ótimo exercício de escrita: subtraí algumas tramas, mesclei personagens, fiz um grande corte e propûs novas costuras. No papel, eu já conseguia vislumbrar uma sequência muito interessante de estados e intensidades pelas quais em breve eu planejava me lançar. Ainda no papel, um jogo a ser jogado com bons atores ia se discernindo. Mas, eu sabia, era necessário ter bons atores. Sem eles não daria para brincar aquele tipo de brincadeira. Por isso, antes mesmo do ano acabar, eu já havia convidado cinco atores. Eu dizia apenas que estava em busca do que seria, mas que partiria de uma obra de Félix Guattari e Gilles Deleuze. Em todos os convites feitos, era claro um desejo mútuo de compartilhar o ofício teatral.

Muito tempo depois eu parei para refletir que havia convidado um elenco sem saber qual seria a peça. Não que eu não soubesse, mas o que estava se anuncia era uma espécie de inversão do processo. Geralmente se escolhe uma obra para, em seguida, escolher os atores para encená-la. Com Sinfonia Sonho, primeiro vieram os atores. Conscientemente ou não, hoje posso dizer que desde sempre esteve em jogo uma tentativa tremenda para resignificar os lugares de direção e atuação. Pareceu-me extremamente necessário retirar da figura do diretor a ciência de todos os fatos, bem como tirar o ator da função de quem apenas aguarda paciente pelo desenho preciso de sua ação. Essa aposta – sem nome – seria um dos pilares da criação.

Terminado o ano de 2010, eu havia realizado inúmeras leituras do capítulo As Máquinas Desejantes, havia feito uma adaptação dramatúrgica do romance Precisamos falar sobre o Kevin, convidado um elenco composto por dois atores e três atrizes e criado um blog, no qual a postagem de referências e reflexões foram se tornando exercícios diários de escrita e criação. Eu havia decidido que contaria uma história. Tal história o romance contemplava. Eu acreditando, pela primeira vez, que talvez pudesse ser bom ir ao teatro para acompanhar alguma história ser contada. Para além da forma, para além da crise do conteúdo e da linguagem, eu decidi que era necessário – dentro da minha trajetória acadêmica – narrar um acontecimento dentro do qual as personagens espelhassem a vida. Esta seria, de fato, a minha tal parcela “clássica”. Mas, a encenação seria provavelmente um filtro que transtornaria a fidelidade deste espelho. Se viria a distorcer ou aumentar ou intensificar os traços, não me importou saber nem dizer. Ainda não era o momento para isso. Neste ponto do processo, me lembro, a minha grande questão era transitar entre paciência e ansiedade, compreendendo ao mesmo tempo em que aceitando que o processo, por vezes, teria um tempo muito próprio. E que caberia a mim entender seu movimento para decidir qual seria o momento mais apropriado para agir.

 
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Capítulo 3 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

“Desejo e intuição”

No momento em que comecei a pensar neste projeto, eu havia acabado de apresentar, integrando a programação da Mostra Mais 2010, o meu segundo exercício de direção na Direção Teatral: uma montagem criada a partir da dramaturgia Esperando Godot de Samuel Beckett. Era julho de 2010, quando após duas apresentações alguma coisa detonou em mim a necessidade imediata de desbravar o projeto seguinte. Hoje, com uma boa distância temporal deste momento que descrevo, percebo com clareza que o tal projeto seguinte nasceu diretamente afetado pela recepção que a minha segunda montagem obteve em espaço acadêmico.

O curso de Direção Teatral, tal como estabelecido em sua grade curricular, prevê que o aluno-diretor cumpra nos seus três últimos períodos (de oito períodos que cursa no decorrer de no mínimo quatro anos de graduação), a criação de três exercícios de encenação (nas disciplinas Direção V, Direção VI e PET – Projeto Experimental em Teatro). O presente memorial é justamente um olhar sobre o meu último exercício, criado como conclusão da disciplina PET. O trabalho curricular anterior (estreado como Esperando Godot na Mostra Mais 2010, mas logo em seguida encenado como Vazio é o que não falta, Miranda em duas temporadas pela cidade do Rio de Janeiro) foi uma aposta muito sincera e vertiginosa por sobre meus desejos e intuições artísticas. Junto a quatro atrizes, montei um espetáculo no qual a noção de espera estabelecida pela dramaturgia de Beckett era problematizada pela lógica de consumo desenfreada de nossos tempos, abrindo a chegada da personagem Godot como uma real possibilidade, ao contrário da sinopse original que apresentava durante dois atos o incessante não-chegar de Godot. Durante o processo percebemos que nossos desejos poderiam florescer, ao invés de serem constantemente interrompidos. Fosse o desejo da atriz ou da personagem, quando em criação, todo desejo nos foi desde sempre possibilidade concreta e ponto de partida. Assim, para além da dramaturgia pós-guerra beckettiana, o que colocamos em cena foi o saldo do nosso encontro com a mesma: em cena, quatro atrizes e um diretor tentam, a todo e qualquer custo, encenar a obra clássica de Beckett, sem sucesso.

Miranda foi, de fato, o meu desejo concentrado, multiplicado e em busca por alguma divisão, mesmo sem saber como fazê-la. A recepção do espetáculo, por parte dos professores que estiveram presentes na banca avaliadora, foi extremamente delicada. A peça foi problematizada em inúmeras instâncias, sobretudo dramatúrgica e, para além de qualquer opinião, tal avaliação significou para mim uma problematização geral do desejo enquanto mote da criação. A questão que eu encontrei – tempos depois – foi: como transformar o meu desejo em algo que possa ser legível, em alguma coisa que possa ser sensível ao espectador que a assiste? Em algum momento eu também percebi que tudo isso talvez não passasse de uma grande ambição minha, um objetivo quase impossível. Mas, foi justamente durante o processo de Miranda que eu também percebi como estes lugares já dados quase sempre mais atrapalham do que orientam uma criação, porque estar em processo, por vezes, soa o mesmo que estar imerso num jogo ininterrupto com limites. Eu quero dizer: desde quando o que julgamos bom é bom num processo criativo e desde quando o que julgamos ruim é de fato ruim a criação? Era preciso atravessar as classificações (dentre outros limites) para permitir que a obra se manifestasse, sem pré-conceitos, sem tanta antecipação.

Durante vários meses até a finalização do projeto de Sinfonia Sonho, eu estive muito irascível com o meu curso de graduação. Sentia-me desrespeitado e a avaliação de Godot foi a responsável por toda essa exaltação. Senti que havia sido avaliado com pouca integridade, com pouca dedicação. Tive a péssima e real sensação de que meus professores não tinham o que falar sobre o meu exercício. Não porque fosse incrível ou iconoclasta – longe disso – mas apenas porque se chocava com limites inúmeros relativos as noções de dramaturgia e encenação (que, a meu ver, carecem sempre de uma revisão). Por tudo isso, em momento algum eu me senti avaliado por aquilo que havia posto em cena, por aquilo que eu – enquanto aluno-diretor – estava propondo. Pelo contrário, os comentários recebidos – em sua maioria – tenderam apenas ao que deveria ter sido feito e nunca ao que havia sido proposto. Falou-se de tudo, de exemplos inúmeros na história do teatro, dos grandes mestres da encenação, mas nunca da minha proposição estética, como se eu não tivesse condição de ser responsável por ela. Como se ela fosse, nas palavras de um dos professores, apenas uma glosa infantil.

E foi desse vácuo, dessa sensação de ausência de parâmetros avaliativos, que o sugestivo título O Anti-Édipo me capturou. Eu estava na cidade de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, quando meu olhar foi seduzido pelo sugestivo título. Eu estava dentro de uma livraria e vagava a procura de alguma coisa na qual pudesse atracar. Naquele dia em que encontrei o livro, persistia em mim outra fala recebida durante a avaliação. Uma das professoras me foi categórica e disse algo como você só se formará como diretor teatral se se permitir passar pelo exercício de realizar uma encenação clássica. Que essa transcrição de sua fala não seja inteiramente verdadeira, a verdade é que foi bem isso o que me foi dito. Que eu precisaria passar pelo exercício de realizar uma encenação clássica caso quisesse me formar diretor teatral. E então eis que, semanas depois, me apareceu o Édipo. E tão colado a ele, eis que também o Anti se revelou. Mas não só isso. Entre os dois limites brilhava reluzente um hífen unificador. Ora, num só objeto havia tudo reunido: exatamente como eu me sentia – um “Anti” – e aquilo que me fora exigido – o “Édipo” – a encenação clássica. Obviamente que esse pensamento pequeno e, talvez, mesquinho, me consumiu durante um bom tempo. Eu fiquei certo tempo dividido entre a irritação provocada por essa sugestão e a real tentativa de dar conta da mesma. Eu não quis ceder à exigência da “encenação clássica” ao mesmo tempo que não quis ignorá-la, por intuir que nela houvesse algo importante a minha formação. Por conta desse curto-circuito, as primeiras intuições do meu projeto de formatura foram todas sinônimos de guerra.

Escrever sobre o que eu desejei para este projeto de encenação é desde já discorrer sobre o projeto em si, porque foi este o meu ponto de partida: o próprio desejo. E isso aconteceu alguns dias após apresentar meu segundo exercício de direção, época na qual eu estava justamente vivendo um momento de provação, buscando maneiras para validar meus desejos e aceitá-los sem restrição. Eu pensando sobre como tornar um desejo algo estético, algo dramático, algo capaz de se estender de mim a você, de lhe ser também sensível e capaz de fazer doer. Eu pensando no desejo como ponte e não feito muro. E então o tema me chegou no exato instante em que li na orelha do livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari algo como a expressão “potência revolucionária do desejo”. O desejo enquanto uma potência que liberta e revoluciona, o desejo como qualidade inata do homem. Versar sobre o desejo foi para mim voltar a mover intuições, crendo na possibilidade não unicamente do saber, mas também do se descobrir em jogo, em processo, em movimento e flerte com o mundo e seu entorno.

Num primeiro momento, O Anti-Édipo me disse respeito a isso, a esse libertação e desbravar do desejo. E então eu decidi: ali estava a minha montagem de formatura. E, como de costume, defendi tal escolha como se tivesse algo muito concreto em mãos. Aos amigos mais próximos, eu defendia a obra mesmo sem ter lido um capítulo sequer. E foi nesse jogo, dizendo isso para um amigo que conhecia a tal obra fazia tempo, que ele me sugeriu trabalhar apenas sobre o capítulo inicial, intitulado As Máquinas Desejantes. Conversa vai, conversa vem, eu fui percebendo que, de acordo com a argumentação do meu amigo, o primeiro capítulo abria a “tese” dos autores, enquanto os seguintes agiam na demolição de alguns valores instituídos e na construção de uma nova lógica para se ler as mesmas questões. Depois de folhear o primeiro capítulo, percebi aquilo que para mim, muito rapidamente, pareceu bastar: a validação do desejo. Era isso. Não me importava para onde os autores pudessem levar essa primeira colocação. Eu não estava interessado no que ela viria a destruir em seu caminho nem naquilo que viria a ser construído. Apenas me importou reconhecer que o ser que deseja é o ser humano por excelência. Desejar é o estado natural e primeiro do ser humano. Estado inalienável, talvez. Eu me senti, de alguma forma, posto num divã e com a alma acariciada.

Eis então que Sinfonia Sonho começou a se anunciar como um forte concentrado de desejos, intuições e experimentações, mas si também como uma tremenda busca por identificação. Melhor: uma busca por legibilidade. O espetáculo quer chegar ao espectador e ali ficar, ponto. Não quer chegar para responder alguma coisa. Quer chegar como ponto final inflamado e elevado a interrogação. Sinfonia Sonho é uma grande pergunta. É uma pergunta que não deixa cessar algumas de minhas faltas. Não é um espetáculo que se pretende solução. É uma tentativa de tornar o meu desejo menos meu e mais do mundo. Dessa forma, em equipe, logo me vi rodeado por uma diferença muito maior e potente. A diferença não como movimento a ser domado e equalizado, mas como estímulo-catalisador da criação.

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Capítulo 2 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.