No momento em que comecei a pensar neste projeto, eu havia acabado de apresentar, integrando a programação da Mostra Mais 2010, o meu segundo exercício de direção na Direção Teatral: uma montagem criada a partir da dramaturgia Esperando Godot de Samuel Beckett. Era julho de 2010, quando após duas apresentações alguma coisa detonou em mim a necessidade imediata de desbravar o projeto seguinte. Hoje, com uma boa distância temporal deste momento que descrevo, percebo com clareza que o tal projeto seguinte nasceu diretamente afetado pela recepção que a minha segunda montagem obteve em espaço acadêmico.
O curso de Direção Teatral, tal como estabelecido em sua grade curricular, prevê que o aluno-diretor cumpra nos seus três últimos períodos (de oito períodos que cursa no decorrer de no mínimo quatro anos de graduação), a criação de três exercícios de encenação (nas disciplinas Direção V, Direção VI e PET – Projeto Experimental em Teatro). O presente memorial é justamente um olhar sobre o meu último exercício, criado como conclusão da disciplina PET. O trabalho curricular anterior (estreado como Esperando Godot na Mostra Mais 2010, mas logo em seguida encenado como Vazio é o que não falta, Miranda em duas temporadas pela cidade do Rio de Janeiro) foi uma aposta muito sincera e vertiginosa por sobre meus desejos e intuições artísticas. Junto a quatro atrizes, montei um espetáculo no qual a noção de espera estabelecida pela dramaturgia de Beckett era problematizada pela lógica de consumo desenfreada de nossos tempos, abrindo a chegada da personagem Godot como uma real possibilidade, ao contrário da sinopse original que apresentava durante dois atos o incessante não-chegar de Godot. Durante o processo percebemos que nossos desejos poderiam florescer, ao invés de serem constantemente interrompidos. Fosse o desejo da atriz ou da personagem, quando em criação, todo desejo nos foi desde sempre possibilidade concreta e ponto de partida. Assim, para além da dramaturgia pós-guerra beckettiana, o que colocamos em cena foi o saldo do nosso encontro com a mesma: em cena, quatro atrizes e um diretor tentam, a todo e qualquer custo, encenar a obra clássica de Beckett, sem sucesso.
Miranda foi, de fato, o meu desejo concentrado, multiplicado e em busca por alguma divisão, mesmo sem saber como fazê-la. A recepção do espetáculo, por parte dos professores que estiveram presentes na banca avaliadora, foi extremamente delicada. A peça foi problematizada em inúmeras instâncias, sobretudo dramatúrgica e, para além de qualquer opinião, tal avaliação significou para mim uma problematização geral do desejo enquanto mote da criação. A questão que eu encontrei – tempos depois – foi: como transformar o meu desejo em algo que possa ser legível, em alguma coisa que possa ser sensível ao espectador que a assiste? Em algum momento eu também percebi que tudo isso talvez não passasse de uma grande ambição minha, um objetivo quase impossível. Mas, foi justamente durante o processo de Miranda que eu também percebi como estes lugares já dados quase sempre mais atrapalham do que orientam uma criação, porque estar em processo, por vezes, soa o mesmo que estar imerso num jogo ininterrupto com limites. Eu quero dizer: desde quando o que julgamos bom é bom num processo criativo e desde quando o que julgamos ruim é de fato ruim a criação? Era preciso atravessar as classificações (dentre outros limites) para permitir que a obra se manifestasse, sem pré-conceitos, sem tanta antecipação.
Durante vários meses até a finalização do projeto de Sinfonia Sonho, eu estive muito irascível com o meu curso de graduação. Sentia-me desrespeitado e a avaliação de Godot foi a responsável por toda essa exaltação. Senti que havia sido avaliado com pouca integridade, com pouca dedicação. Tive a péssima e real sensação de que meus professores não tinham o que falar sobre o meu exercício. Não porque fosse incrível ou iconoclasta – longe disso – mas apenas porque se chocava com limites inúmeros relativos as noções de dramaturgia e encenação (que, a meu ver, carecem sempre de uma revisão). Por tudo isso, em momento algum eu me senti avaliado por aquilo que havia posto em cena, por aquilo que eu – enquanto aluno-diretor – estava propondo. Pelo contrário, os comentários recebidos – em sua maioria – tenderam apenas ao que deveria ter sido feito e nunca ao que havia sido proposto. Falou-se de tudo, de exemplos inúmeros na história do teatro, dos grandes mestres da encenação, mas nunca da minha proposição estética, como se eu não tivesse condição de ser responsável por ela. Como se ela fosse, nas palavras de um dos professores, apenas uma glosa infantil.
E foi desse vácuo, dessa sensação de ausência de parâmetros avaliativos, que o sugestivo título O Anti-Édipo me capturou. Eu estava na cidade de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, quando meu olhar foi seduzido pelo sugestivo título. Eu estava dentro de uma livraria e vagava a procura de alguma coisa na qual pudesse atracar. Naquele dia em que encontrei o livro, persistia em mim outra fala recebida durante a avaliação. Uma das professoras me foi categórica e disse algo como você só se formará como diretor teatral se se permitir passar pelo exercício de realizar uma encenação clássica. Que essa transcrição de sua fala não seja inteiramente verdadeira, a verdade é que foi bem isso o que me foi dito. Que eu precisaria passar pelo exercício de realizar uma encenação clássica caso quisesse me formar diretor teatral. E então eis que, semanas depois, me apareceu o Édipo. E tão colado a ele, eis que também o Anti se revelou. Mas não só isso. Entre os dois limites brilhava reluzente um hífen unificador. Ora, num só objeto havia tudo reunido: exatamente como eu me sentia – um “Anti” – e aquilo que me fora exigido – o “Édipo” – a encenação clássica. Obviamente que esse pensamento pequeno e, talvez, mesquinho, me consumiu durante um bom tempo. Eu fiquei certo tempo dividido entre a irritação provocada por essa sugestão e a real tentativa de dar conta da mesma. Eu não quis ceder à exigência da “encenação clássica” ao mesmo tempo que não quis ignorá-la, por intuir que nela houvesse algo importante a minha formação. Por conta desse curto-circuito, as primeiras intuições do meu projeto de formatura foram todas sinônimos de guerra.
Escrever sobre o que eu desejei para este projeto de encenação é desde já discorrer sobre o projeto em si, porque foi este o meu ponto de partida: o próprio desejo. E isso aconteceu alguns dias após apresentar meu segundo exercício de direção, época na qual eu estava justamente vivendo um momento de provação, buscando maneiras para validar meus desejos e aceitá-los sem restrição. Eu pensando sobre como tornar um desejo algo estético, algo dramático, algo capaz de se estender de mim a você, de lhe ser também sensível e capaz de fazer doer. Eu pensando no desejo como ponte e não feito muro. E então o tema me chegou no exato instante em que li na orelha do livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari algo como a expressão “potência revolucionária do desejo”. O desejo enquanto uma potência que liberta e revoluciona, o desejo como qualidade inata do homem. Versar sobre o desejo foi para mim voltar a mover intuições, crendo na possibilidade não unicamente do saber, mas também do se descobrir em jogo, em processo, em movimento e flerte com o mundo e seu entorno.
Num primeiro momento, O Anti-Édipo me disse respeito a isso, a esse libertação e desbravar do desejo. E então eu decidi: ali estava a minha montagem de formatura. E, como de costume, defendi tal escolha como se tivesse algo muito concreto em mãos. Aos amigos mais próximos, eu defendia a obra mesmo sem ter lido um capítulo sequer. E foi nesse jogo, dizendo isso para um amigo que conhecia a tal obra fazia tempo, que ele me sugeriu trabalhar apenas sobre o capítulo inicial, intitulado As Máquinas Desejantes. Conversa vai, conversa vem, eu fui percebendo que, de acordo com a argumentação do meu amigo, o primeiro capítulo abria a “tese” dos autores, enquanto os seguintes agiam na demolição de alguns valores instituídos e na construção de uma nova lógica para se ler as mesmas questões. Depois de folhear o primeiro capítulo, percebi aquilo que para mim, muito rapidamente, pareceu bastar: a validação do desejo. Era isso. Não me importava para onde os autores pudessem levar essa primeira colocação. Eu não estava interessado no que ela viria a destruir em seu caminho nem naquilo que viria a ser construído. Apenas me importou reconhecer que o ser que deseja é o ser humano por excelência. Desejar é o estado natural e primeiro do ser humano. Estado inalienável, talvez. Eu me senti, de alguma forma, posto num divã e com a alma acariciada.
Eis então que Sinfonia Sonho começou a se anunciar como um forte concentrado de desejos, intuições e experimentações, mas si também como uma tremenda busca por identificação. Melhor: uma busca por legibilidade. O espetáculo quer chegar ao espectador e ali ficar, ponto. Não quer chegar para responder alguma coisa. Quer chegar como ponto final inflamado e elevado a interrogação. Sinfonia Sonho é uma grande pergunta. É uma pergunta que não deixa cessar algumas de minhas faltas. Não é um espetáculo que se pretende solução. É uma tentativa de tornar o meu desejo menos meu e mais do mundo. Dessa forma, em equipe, logo me vi rodeado por uma diferença muito maior e potente. A diferença não como movimento a ser domado e equalizado, mas como estímulo-catalisador da criação.
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Capítulo 2 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.