O início do processo foi apenas leitura, levantamento e abandono de referências. Cuidei de ler repetidas vezes o capítulo eleito referência inaugural. Trata-se de um texto filosófico repleto de referências externas as quais, em sua maioria, eu não conhecia. De setembro a dezembro de 2010, As Máquinas Desejantes foi comigo para todos os lados. A leitura se repetia mais pela minha incompreensão do que por outro motivo. Como é possível essa obra me prender nela mesma se eu nem sequer a compreendo? Eu me fazia essa pergunta, porque fazia tempo que eu não tinha essa relação com outra obra, qualquer que fosse. E então eu segui lendo e me lançando por sobre todas as referências que O Anti-Édipo me apresentava. Destas, destaco aquelas que foram determinantes: a obra O Pensamento Selvagem, de Claude Levi-Strauss e a obra Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber. Com a obra de Levi-Strauss, o conceito de bricolagem se apresentou e, de imediato, se mostrou determinante ao processo. Naquele momento, bricolagem se resumia ao jogo de colar partes distintas e não necessariamente combinantes. Pensar este conceito me estimulava a seguir juntando elementos que, mesmo distintos, me capturavam a atenção. Da mesma forma eu juntei este conceito ao processo e acreditei que ele pudesse revelar sua serventia no decorrer da criação. Já pela obra de Schreber, Deleuze e Guattari evidenciam um caso agudo de esquizofrenia, tema presente no subtítulo de O Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia 1. Schreber foi a pessoa/personagem a partir da qual os dois filósofos desenharam a lógica do homem como alguém naturalmente esquizofrênico, ou seja, como aquele que está em profunda relação com tudo ao seu redor.
Em outubro de 2010 eu criei o blog do espetáculo[1], visando juntar nele tais referências e as primeiras reflexões a partir destes encontros. Ao mesmo tempo em que lia tais livros, estive também atento aos jornais, recortando notícias que me parecessem interessantes e prenhes de dramaturgia. Era dezembro de 2010 quando numa outra livraria, me percebi segurando livros muito pesados (em todos os sentidos). Tinha uma obra de Freud, outra de Carl Gustav Jung, outra de Friedrich Nietzsche e, por último, outro livro de Deleuze. Lembro-me que apoiei os livros numa bancada e ali os abandonei, exigindo-me comprar um romance, para ler outra coisa que não mais conceitos e filosofia. Foi então que me lembrei da capa de um livro que eu sequer lembrava o título. Revirando prateleiras encontrei perdido um único exemplar do romance Precisamos falar sobre o Kevin, da escritora norte-americana Lionel Shriver. A capa, gravada em minha memória, apresenta a imagem de uma criança de pé numa estrada de terra, vestida numa calça jeans com camisa de manga comprida e tênis. Por sobre o seu rosto, porém, ao invés de um gesto infantil há a face de um lobo. Essa imagem, durante anos, me instigou sem que eu nem soubesse do que se tratava o romance.
Precisamos falar sobre o Kevin é um romance que reúne cartas de uma mãe, Eva, a seu marido, Franklin. Eva é mãe de Kevin, mais velho e Célia, nascida depois. Um pouco antes de completar 16 anos, Kevin comete um massacre em sua escola, assassinando cerca de duas dezenas de pessoas, entre amigos de classe, funcionários da escola e professores. O romance parte da seguinte premissa: é possível odiar o próprio filho? Num misto de fatos reais e ficção, Shriver traz a tona temas e questões que, tão logo eu li, rapidamente soube que não teria mais como deles me ausentar. Comprei o livro e junto ao O Anti-Édipo passei o fim de ano entre uma obra e outra. E eis que o tal romance rebateu durante todo o momento aquilo que eu vinha lendo na obra de Deleuze e Guattari. Era como se o romance, por inteiro, fosse um exemplo claro dos conceitos criados pelos dois outros autores (sobretudo “máquinas desejantes” e “corpo sem órgãos”).
Ainda era dezembro e eu já me percebendo ansioso para encontrar alguma dramaturgia na qual aportar. As ideias se multiplicavam dia após dia e no blog eu registrava o nascimento e a morte de inúmeras certezas. Em uma semana, antes mesmo do fim do ano, eu já havia convertido todo o romance em dramaturgia. Foi um ótimo exercício de escrita: subtraí algumas tramas, mesclei personagens, fiz um grande corte e propûs novas costuras. No papel, eu já conseguia vislumbrar uma sequência muito interessante de estados e intensidades pelas quais em breve eu planejava me lançar. Ainda no papel, um jogo a ser jogado com bons atores ia se discernindo. Mas, eu sabia, era necessário ter bons atores. Sem eles não daria para brincar aquele tipo de brincadeira. Por isso, antes mesmo do ano acabar, eu já havia convidado cinco atores. Eu dizia apenas que estava em busca do que seria, mas que partiria de uma obra de Félix Guattari e Gilles Deleuze. Em todos os convites feitos, era claro um desejo mútuo de compartilhar o ofício teatral.
Muito tempo depois eu parei para refletir que havia convidado um elenco sem saber qual seria a peça. Não que eu não soubesse, mas o que estava se anuncia era uma espécie de inversão do processo. Geralmente se escolhe uma obra para, em seguida, escolher os atores para encená-la. Com Sinfonia Sonho, primeiro vieram os atores. Conscientemente ou não, hoje posso dizer que desde sempre esteve em jogo uma tentativa tremenda para resignificar os lugares de direção e atuação. Pareceu-me extremamente necessário retirar da figura do diretor a ciência de todos os fatos, bem como tirar o ator da função de quem apenas aguarda paciente pelo desenho preciso de sua ação. Essa aposta – sem nome – seria um dos pilares da criação.
Terminado o ano de 2010, eu havia realizado inúmeras leituras do capítulo As Máquinas Desejantes, havia feito uma adaptação dramatúrgica do romance Precisamos falar sobre o Kevin, convidado um elenco composto por dois atores e três atrizes e criado um blog, no qual a postagem de referências e reflexões foram se tornando exercícios diários de escrita e criação. Eu havia decidido que contaria uma história. Tal história o romance contemplava. Eu acreditando, pela primeira vez, que talvez pudesse ser bom ir ao teatro para acompanhar alguma história ser contada. Para além da forma, para além da crise do conteúdo e da linguagem, eu decidi que era necessário – dentro da minha trajetória acadêmica – narrar um acontecimento dentro do qual as personagens espelhassem a vida. Esta seria, de fato, a minha tal parcela “clássica”. Mas, a encenação seria provavelmente um filtro que transtornaria a fidelidade deste espelho. Se viria a distorcer ou aumentar ou intensificar os traços, não me importou saber nem dizer. Ainda não era o momento para isso. Neste ponto do processo, me lembro, a minha grande questão era transitar entre paciência e ansiedade, compreendendo ao mesmo tempo em que aceitando que o processo, por vezes, teria um tempo muito próprio. E que caberia a mim entender seu movimento para decidir qual seria o momento mais apropriado para agir.
Capítulo 3 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.