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segunda-feira, 16 de abril de 2012

“Dramatorgia”

Foi no primeiro semestre de 2011 que aconteceu no Rio de Janeiro, em Realengo, o primeiro massacre de crianças em ambiente escolar. No romance Precisamos falar sobre Kevin, um dos principais motes dramáticos era justamente o fato do filho de Eva, Kevin, ter assassinado quase duas dezenas de colegas no colégio em que estudava. Por conta dessa coincidência, desisti rapidamente de encenar essa obra e comecei a refletir se aquilo que eu viria a colocar em cena não poderia ser justamente uma resposta ao real, ao invés de simplesmente uma reprodução de suas mazelas. Depois de alguma busca, percebi que eu deveria assumir a criação da dramaturgia, caso ela pretendesse fazer diferença ao que nossa sociedade havia estabelecido como possibilidade. Comecei a me nutrir das discussões junto aos atores e segui especulando a dramaturgia. No início de junho, assumidamente, a dramaturgia ganhou contornos mais precisos depois de tantas tentativas. Por meio de uma colagem de partes variadas das inúmeras referências que cruzaram nosso caminho, junto ao projeto anexei os seguintes materiais: 1) a descrição das personagens; 2) a sinopse do drama; e 3) uma escaleta com um planejamento da sequência das cenas. A seguir, coloco cada um desses materiais seguidos de uma análise com considerações que julgo relevantes de se pontuar.

Personagens

Célia (Adassa Martins) – Filha de Eva e Franklin, irmã de Kevin. Tem sete anos de idade e aos seis, durante um jantar, teve um dos olhos perfurados pelo irmão e, desde então, usa um tapa-olho. Na nova cidade, sofre com a quantidade imensa de cachorros e moradores de rua.

Corley (Andrêas Gatto) – Esposo de Moira e novo vizinho da família de Eva e Franklin. Ignorando por completo o fato de seu casamento estar em crise, Corley presenteia a esposa todos os dias e segue em busca de alguém para dar o presente mais especial de todos: um cão.

Eva (Virgínia Maria) – Esposa de Franklin, mãe de Kevin e Célia. Recém-nomeada diretora da Escola Municipal Ensino Fundamental, Eva acredita estar vivendo um dos momentos mais felizes de sua vida, por todo o reconhecimento profissional que está obtendo.

Franklin (Dan Marins) – Esposo de Eva, pai de Kevin e Célia. Oncologista, especializado no tratamento de tumores, está desempregado. Relutante, se muda com a família para outra cidade em virtude da promoção da esposa. Sofre o fato de seu pai ter sido comido por um câncer.

Kevin (Márcio Machado) – Filho de Eva e Franklin, irmão de Célia. Tem nove anos de idade e num dia, de súbito, acorda convencido de que é preciso virar música. Obstinado em sua busca, transtorna a relação familiar na concretização de seu desejo, que o consome.

Moira (Laura Nielsen) – Esposa de Corley e nova vizinha da família de Eva e Franklin. Vive a crise de seu matrimônio acreditando veementemente que é preciso ter um novo filho. Com a chegada dos novos vizinhos, desenvolve um apego desmedido por Célia e Kevin.

Começo pela escolha dos nomes. A família principal (Eva, Franklin, Kevin e Célia) teve seus nomes retirados diretamente do romance Precisamos falar sobre Kevin. Também do romance eu mantenho a situação do olho perfurado de Célia, algo que na dramaturgia acaba sendo recriado e colocado noutra situação. A família vizinha (Corley, Moira e Tomas) tem seus nomes de lugares mais diversos: Corley vem do sobrenome de uma personagem do romance; Moira surge dos estudos que fiz sobre as tragédias gregas e Tomas foi o primeiro nome que surgiu ao pensar sobre qual nome dar ao filho de Corley e Moira.

Sobre as idades, apenas me importou definir a faixa etária das crianças. De alguma forma são elas as protagonistas da história: Célia, Tomas e Kevin, respectivamente com seus oito, nove e dez anos de idade. Célia e Kevin tem as mesmas idades que dois dos meus quatro sobrinhos. Em processo, a orientadora de direção me pontuou coisas específicas sobre a idade de Célia (7 anos), sobretudo o fato de ser nesta idade – também a de Alice – que a dentição da criança começa a mudar vertiginosamente, mudando também seu comportamento. A partir dessa observação, tentei desenhar uma personagem que começa a se descobrir enquanto pessoa, num movimento de apropriação da linguagem e de seus próprios desejos.

Quanto a distribuição dos papéis, o critério foi também variado. Quanto as crianças e seus respectivos pais, de cara a diferença nas estaturas dos atores me pareceu um dado interessante a ser explorado, sobretudo no caso de Kevin (Márcio Machado) para com Eva (Virgínia Maria) e Franklin (Dan Marins). Márcio é o ator mais alto do elenco e foi a partir desde dado físico que comecei a pensar sobre uma possível engrenagem interessante para a dramaturgia: a de que as personagens infantis iam se adultizando e os adultos se infantilizando. Ao término do espetáculo, a altura de Kevin não me parece tão despropositada, bem como a de sua mãe, que por ser bem menor que ele, me dá por inteiro o caráter pusilânime de tal personagem. Sobre Tomas, ressalto o fato curioso de ter percebido a necessidade desta personagem somente após ter escrito a sinopse e escaleta das cenas.

TOMAS (Gunnar Borges) Filho de Corley e Moira. Tinha sete anos quando, durante os preparativos para seu aniversário, acabou subindo aos céus levado por balões. O corpo de Tomas é encontrado uma semana depois que os novos vizinhos chegam a sua nova casa, explodindo a realidade dentro da qual as duas famílias tentavam se equilibrar.

Tomas, a princípio, seria apenas citado como o filho morto de Corley e Moira. Em discussão com a orientadora, a infância foi se revelando o cerne do espetáculo. Por isso Tomas ganhou corpo físico e dramatúrgico, para que possibilitasse mais desdobramentos sobre a infância. Célia, Tomas e Kevin são alvos da violência e inconsequência humana. Mais que isso: não sofrem abusos diretos nem agressões premeditadas de algum assassino. Em cena, são três crianças arrasadas pela indiferença e pela inconsequência, pela falta de responsabilidade e humanidade. Mais do que temas como pedofilia, por exemplo, me interessou desbravar a criança como propagadora da violência. A criança como ser que é lançado em situações que não deveriam lhe ser dadas e que diante ao horror desse encontro, age a violência como forma de assegurar sua sobrevivência. Talvez pior que a violência sobre uma criança seja a violência realizada por ela mesma. Talvez pior do que uma criança que propaga inconscientemente a violência, é pensar que esta consciência possa estar sendo criada por ela e que o ato violento possa ser intencional e arquitetado.

Cada personagem tem uma ou outra característica retirada do e-mail resposta que cada ator me enviou quando solicitei a eles uma lista de seus desejos mais desejados. Exemplos: sofre com a quantidade imensa de cachorros e moradores de rua; e segue em busca de alguém para dar o presente mais especial de todos: um cão. Ao transitar entre as personagens tais buscas, acreditei ser possível humanizá-los ainda mais, dotando-os de desejos possíveis ou, ao menos, reconhecíveis. Os dois exemplos citados acima se perderam no decorrer do processo, porém, até serem abandonados serviram como mote para a criação das personagens. Volto ao cuidado de não intencionalizar excessivamente as vontades criativas. Essa foi a maneira encontrada para lidar com os desejos enviados pelos atores. Eles estão muito presentes no espetáculo, porém, de maneiras por vezes sugeridas, quase invisíveis. Uns viraram discurso direto das personagens, outros desejos viraram intenção ou mesmo tema de alguma cena.

Sinopse

Tudo acontece em uma semana. Da noite de um domingo à noite do domingo seguinte. Eva e Franklin acabam de chegar a sua nova casa, alugada. Eva foi promovida a diretoria da Escola Municipal Ensino Fundamental e no domingo em que chegam nesta nova casa, é aniversário de Célia, filha mais nova do casal.

No correr da semana, Eva mantém-se presa ao trabalho enquanto seu marido, Franklin, passa os dias levando os filhos à escola e os buscando, incapaz de abrir as caixas da mudança. É durante a semana que os vizinhos se conhecem. Corley e Moira, família vizinha, convidam Célia e Kevin para brincar em sua casa, no fim de semana.

Numa manhã de terça-feira, Kevin, o filho mais velho de Eva e Franklin, acorda convencido de que é preciso virar música. De noite, com a família reunida para o jantar, ele faz seu pronunciamento: mãe, quero ser música. Eva trata de pôr fim a sua brincadeira e naquela noite Kevin não consegue dormir, com olhos abertos, sonha em ser sinfonia.

Passamos, então, a acompanhar as tentativas de Kevin para efetivar o desejo que o consome. Nos dias posteriores, ele consegue convencer o próprio pai e a irmã de que é preciso ser música. Enquanto Eva trabalha desesperadamente na resolução do massacre que assolou sua Escola, as crianças cada vez mais adentram a casa dos vizinhos, entretidos com o quarto cheio de brinquedos do filho deles que nunca viram.

Final de semana. Todos em suas respectivas casas. Hora do noticiário. Descobre-se o paradeiro do filho de Moira e Corley que até então, imaginava-se, estar por vir. Moira não está grávida. E o desejo de Kevin não é mera brincadeira de criança. As paredes tremem e a intimidade se converte em sutura. Kevin, no meio do furacão, vira, enfim, música.

A sinopse entregue junto ao projeto tentava, de alguma forma, propor espaços que pudessem ser dinamitados no processo de criação textual. Foram muitos lugares mais sugeridos do que determinados. Por exemplo, por conta do estudo sobre as tragédias gregas (sobretudo a partir de Édipo Rei de Sófocles), optei que a dramaturgia sustentasse uma sucessão muito acelerada de acontecimentos. Por meio dessa vertiginosidade eu acreditava ser possível o trágico poderia emergir. Assim, desenhei uma sequência de cenas que aconteciam durante uma semana, ou seja, durante pouco tempo todas as mudanças de sorte aconteceriam. Ao mesmo tempo, alguns personagens tiverem seu percurso simplificado a uma única ação, por exemplo, Eva (sempre atarefada com as coisas de seu novo emprego) e Franklin (amortecido pela morte do pai). Detalhes como o aniversário de Célia serviram, sobretudo, para dar a dramaturgia espaço para construir jogos que evidenciassem melhor a relação entre as personagens. Pensei que não fazia sentido apresentar uma personagem, mas sim mostrá-la quando em situação, quando em ação dentro de um dado acontecimento.

O encontro das duas famílias foi construído de maneira muito diferente do que a sinopse sugeriu. Muito cedo, Andrêas e Laura (respectivamente, intérpretes de Corley e Moira) desdobraram o horror de suas personagens para um grau até então não previsto em nenhum planejamento do drama. Foi preciso acompanhar sua guinada, portanto, hoje analisando a peça escrita, percebe-se como esta família vizinha esteve mais fechada – quase de luto – e como sua abertura foi sendo aos poucos realizada. É Corley quem conhece o vizinho Franklin, enquanto Moira espia as crianças vizinhas indo para a escola. Eva e Franklin, por exemplo, nem chegam a conhecer Moira. Conforme escrito no capítulo Projeto de Encenação, muitas coisas foram abandonadas, porém outras serviram imensamente. Como exemplo deste aproveitamento, cito o pedido de Kevin (mãe, quero virar música) e a consequente bronca que Eva dá em seu filho. É por conta dessa reação da mãe que Kevin adormece e acaba, em seu sono, tendo um pesadelo. Neste pesadelo, eu pensei, por que não tornar possível algo que em vida Kevin parece não conseguir dar conta? Voltando ao projeto, o sonho de Kevin age como exemplo direto do quarto vértice no triângulo familiar e oxigena a sua existência.

Conforme escrito anteriormente, durante nosso processo aconteceu em Realengo um primeiro massacre de crianças em ambiente escolar. Na época eu tentei não dar muito atenção ao fato em virtude do horror que o mesmo fez emergir. Eu me lembro de ter recortado todos os jornais que pude, incapaz de assistir a vídeos e reportagens. Isso ficou durante um bom tempo dentro de um envelope, ao lado da minha cama. E ao escrever a sinopse, eu percebi que precisava de um bom motivo para que as crianças – Célia e Kevin – pudessem cada vez mais adentrar a casa dos vizinhos (já que intuia que Moira seria a detonadora de alguma tragédia final). Foi neste ponto em que o massacre me deu motivo para colocar as crianças de férias. Porém, eu descobriria adiante, mais que isso: o massacre deu toda a tônica da dramaturgia e a encenação (e isso tudo, apenas porque no princípio, o massacre pôde ser apenas um detalhe e não o centro das atenções).

De maneira diferente, o virar música de Kevin sempre foi um mote e um problema. No projeto eu digo algo como ser essa a busca não só da personagem como também de toda a equipe de criação. Durante os primeiros ensaios, fizemos seminários a partir do tema O que é virar música? Especulamos muitas possibilidades, das mais fantasiosas as mais científicas. Mas foi depois de um sonho que tive que a coisa amanhaceu esclarecida: não cabia tanto investir na metáfora do virar música. Isso deveria ser algum desdobramento e não a coisa em si. Quero dizer: é óbvio que virar música é um chamariz poético da peça, mas para Kevin – uma criança de nove anos – isso seria melhor enquanto jogo e não feito metáfora. Foi por conta do título Peça de Formatura, imaginado durante a feitura do projeto de encenação, que eu comecei a desbravar que, na verdade, todo esse desejo de Kevin – o de virar música – havia sido criado por conta de uma peça teatral que ele começou a ensaiar em sua nova escola. De acordo com a postagem sobre o título [1], destaco:

[...] eu não sei. penso em PEÇA DE FORMATURA e algum gesto delicado se anuncia. quer dizer, todo o drama, toda a coisa parte por conta disso. vamos por parte: célia se matricula numa nova escola e das coisas todas que mais chamam a sua atenção está esta: qual peça de formatura faremos para encerrar o ano letivo? kevin da mesma forma aguarda ansioso, porém discreto, por saber qual teatro encerrará seu ano letivo. e o que fará nele? a presença do teatro como ferramenta de construção e criação não somente da ficção mas da própria vida. um mundo, país, comunidade na qual esta experiência tivesse força e mais que isso, já fizesse parte da ousadia que é o virar dos dias. [...]

A escrita vai se escrevendo e por vezes só precisa das suas mãos para aparecer. Você digita e digita e as palavras vão saltando ansiosas por expressão. Engraçado que durante a escritura da sinopse, as palavras sinfonia e sonho apareceram e só mais tarde vieram a se transformar no título do espetáculo. Foram muitas tentativas: Mãe, quero ser música; Peça de formatura e, por fim, Sinfonia Sonho. Na sinopse, é previsto que a dramaturgia acompanhe o movimento de Kevin na tentativa de virar música, porém, tal como a dramaturgia se configurou, o que temos é uma espécie de refrão (conforme identificado pela orientadora de direção) – um leitmotiv – pelo qual Kevin, sempre trancado em seu quarto, se questiona sobre tudo aquilo que o atormenta e impede de contemplar seu desejo: o de virar música.

Escaleta Primária

Domingo – FESTA CÉLIA

Noite de domingo. Eva e Franklin acabam de chegar a sua nova casa, alugada. É aniversário de Célia, filha mais nova do casal. Eles improvisam uma festa para a filha, ainda enjoada da longa viagem que tiveram de carro. Todos colocam tapa-olho, como fosse o tapa-olha uma espécie de chapeuzinho. Mas a festa de Célia não dá certo mesmo assim. Recém-mudados para uma nova cidade, a família não tem a quem convidar, o aparelho musical não funciona e a festa acaba sem música. Célia faz pirraça enquanto Kevin a observa, atento e desolado.

Segunda – OS VIZINHOS

Manhã de segunda-feira. Eva foi promovida à diretoria da Escola Municipal Ensino Fundamental e por isso parte veloz para o trabalho. Franklin leva os filhos à mesma escola e os busca, horas depois, incapaz de abrir as caixas da mudança. Nesta tarde, Franklin, conhece os vizinhos, que convidam Célia e Kevin para brincar em sua casa, no fim de semana.

Terça – O PRONUNCIAMENTO

Manhã de terça-feira. Kevin, o filho mais velho de Eva e Franklin, acorda convencido de que é preciso virar música. Vaga o dia tramando sua ação. Sem rumo, já de noite, com a família reunida para o jantar, ele faz seu pronunciamento: mãe, quero ser música.

Quarta – SINFONIA SONHO

Noite de quarta-feira. Kevin segue sem compreender, mas caminha repleto do seu desejo. Ele nele persiste. Mas Eva, após o jantar, trata de pôr fim a brincadeira de seu filho e naquela noite Kevin não consegue dormir. Com olhos abertos, ele sonha em ser sinfonia. No sonho, o desejo de Kevin dança trepidante sobre a impossibilidade determinada pela mãe.

Quinta – MASSACRE LOCAL

Manhã de quinta-feira. Massacre na Escola Municipal Ensino Fundamental. Eva enlouquece. As aulas são interrompidas e Franklin volta para casa, com as crianças, sôfregas de horror. Certos impossíveis são mais possíveis do que imaginamos, Kevin talvez venha a pensar. Passamos então a acompanhar as tentativas de Kevin para efetivar o desejo que agora, ainda mais, o consome. Kevin convence Célia de que precisa virar música. Célia se empolga com a possibilidade do irmão ser famoso.

Sexta – NÃO-DIVISÃO CELULAR

Manhã de sexta-feira. Kevin convence o próprio pai de que é preciso virar música. Enquanto Eva trabalha desesperadamente na resolução da tragédia que assolou sua escola, as crianças cada vez mais adentram a casa dos vizinhos, entretidos com o quarto cheio de brinquedos do filho deles que nunca viram.

Sábado – O BALÃO

Noite de sábado. Todos em suas respectivas casas. Hora do noticiário. Para além da tragédia na Escola, outra criança é encontrada morta. É o filho de Moira e Corley que até então, imaginava-se, estar por vir. Moira não está grávida. E o desejo de Kevin se enerva até o limite.

Domingo – DEUS EX-MACHINA

EVA – É um desejo de morte, filho?

KEVIN – Não, mãe, é só de eternidade.

EVA – Mas não é possível ser eterno, eu já lhe falei. Nem é possível ser música.

KEVIN – Mas, veja: eu estou sendo. Olha, eu tô sendo música.

Kevin, no meio do furacão, vira, enfim, música.

A criação desta escaleta foi determinante para que a dramaturgia pudesse florescer. Eu, de fato, me guiei por essa estrutura primária. Naturalmente, a cada cena escrita as coisas se modificavam e desdobravam aquilo previsto no modelo acima. Algumas cenas foram completamente novas e pouco se serviram do que fora previsto. Isso nunca foi um problema porque o propósito da escaleta foi sobretudo o de criar um encadeamento dos acontecimentos, provocando analogias entre as partes do espetáculo e um desenho firme de cada personagem, de cada trajetória.

No início, a dramaturgia foi prevista para ser criada em processo colaborativo. Isso não chegou a acontecer. Comecei a escrever o texto após cerca de doze ensaios com o elenco. Nestes primeiros ensaios, tudo o que produzimos já foi a partir dessa primeira estruturação dramatúrgica entregue junto ao projeto. Nesses ensaios, fomos alargando as personagens e abandonando algumas características em troca de outras, novas. O corpo dos atores – de fato, a sua fisicalidade – foi essencial para tornar essas figuras mais humanas. Alguns dramas previstos no papel eram menores quando postos em cena, ou nem isso, alguns dramas eram mais cômicos do que trágicos. Todo esse movimento foi me afetando enormemente, mesmo que não houvesse uma consciência disso.

Sem saber ao certo explicar o porquê, o texto de Sinfonia Sonho foi escrito em apenas um mês, outubro de 2011. Entreguei as três primeiras cenas (Festa Célia + Os Vizinhos + O Pronunciamento) no ensaio da quinta-feira 06 de outubro e neste mesmo dia, agendei a data das próximas entregas de texto. Na quinta-feira 20 de outubro entreguei mais duas cenas (Sinfonia Sonho + Massacre Local), ao contrário das três que haviam sido planejadas. E no ensaio da quinta-feira 03 de outubro, terminei de entregar as cenas pendentes (Não-Divisão Celular + O Balão + Deus Ex-Machina). No meio dessas entregas, também entreguei páginas que organizavam as cenas em três atos (sugestão da orientadora de direção).

Creio ter sido importante estabelecer tais prazos para que toda a equipe pudesse se guiar. Assim como os atores tinham novos textos para decorar, todos tínhamos novas cenas para estruturar. Tais prazos me obrigaram a sentar e escrever e quase todas as cenas foram escritas com quase nenhuma antecedência. Sempre houve um medo meu de encarar a escritura, sobretudo quando as ideias daquilo que era preciso constar em cada cena iam se clareando de maneira irrevogável. Quer dizer: quanto mais eu demorava a escrever, mais a cena se escrevia sozinha em minha cabeça.

Alguns dogmas, se é que assim podem ser chamados, tornaram a criação da dramaturgia de fato um jogo a ser jogado. Destaco duas regras que me obriguei a seguir: 1) cada cena teria um título composto por duas palavras; e 2) as falas das personagens sempre que possível deveriam ter o tamanho máximo de uma linha quando digitadas. Tais regras, respectivamente, me deram um olhar mais amplo sobre as temáticas em jogo, sobre aquilo que de fato configurava o núcleo da cena e, por último, me permitiram certa fluidez do texto, certo andamento determinante a uma dramaturgia que se quisesse vertiginosa.

Em se falando de gênero, conforme já exposto, encaro Sinfonia Sonho como uma tragédia dita contemporânea. Há uma série de insinuações a certa lógica trágica que não tenho plena consciência, mas que se manifestam independente da minha vontade. Intencionalmente, assino a vertigem dos acontecimentos, numa sucessão muito rápida de eventos: a chegada na nova cidade, apresentação das personagens, os vizinhos, o pronunciamento de Kevin, o seu pesadelo, o massacre na escola, o encontro de Moira com as crianças, a pira de Eva, a morte de Tomas, a partida de Franklin, o sequestro de Célia e a morte de Moira. Ao mesmo tempo, é divertido brincar com a cegueira de Célia porque ela, inevitavelmente, sugere alguma ou qualquer relação com o mito de Édipo.

Sobre esta personagem, Célia, a irmã de Kevin, há um detalhe especial: desde o início me pareceu necessário provocar uma identificação imediata com o público. Talvez porque soubesse que o final da peça fosse explodir por sobre as crianças. Estas sim sairiam da peça destruídas, violadas. Assim, Célia se tornou uma personagem divertida e autêntica e quando vemos a peça engolir tal personagem para dentro de uma sequência de acontecimentos trágicos, o que sentimos tem a ver com a tal catarse desenhada por Aristóteles em sua Arte Poética. Por meio dessa personagem e da tragédia que a arrasta, sentimos terror e piedade, num movimento que purga em nós essas energias. Obviamente que isso não está dado. Aqui desenho em palavras apostas e buscas que ainda não cessaram de acontecer, de se testar e desdobrar em novas tentativas e possibilidades.

Pontuo estes vários pedaços porque foi por meio dessa bricolagem, eu digo, desse somatório de pequenas partes, pequenas tramas e desejos, que a dramaturgia pôde enfim nascer, marcada por uma riqueza de temas e discussões, uma dramaturgia que eu julgo marcada pela diferença. Durante o processo, recortei muitas notícias de jornais. Ao criar as cenas, retomei o estudo de algumas, tais como a notícia do tratamento de células cancerígenas com a frequência da sinfonia de Beethoveen e como os depoimentos obtidos após o massacre em Realengo. Essa diferença dos discursos, talvez, me faça acreditar num possível motivo que explique o grande alcance que o texto pareceu ter nas três apresentações dentro da XI Mostra de Teatro da UFRJ. Ao reunir os temas, as situações e questões vividas por cada personagem, damos conta de uma parcela muito grande de indagações que também, imagino, os mais diversos espectadores podem se questionar. Afinal, é de se esperar que nossos espectadores saibam o que é isso de filho, pai e mãe. O que é isso de infância e idade adulta. Eles sabem o que é isso de violência e morte. São temas universais tratados num contexto específico. A dramaturgia como encadeamento que nos traz de volta a nós mesmos, porém por caminhos ficcionais.

Em termos conceituais da dramaturgia, estive o tempo inteiro – quase em silêncio – flertando com o conceito de corpo sem órgãos, proposto em O Anti-Édipo. Durante o início de 2011, ainda quando em pesquisa junto aos atores, chegamos a um sério questionamento: seria a experiência teatral ela mesma um corpo sem órgãos? Se sim, apresentamos nesse sentido uma realidade inóspita e ligeiramente impraticável. Em cena, temos uma realidade improdutiva sem, no entanto, deixar de ser, de estar e existir. Uma realidade que funciona por si própria e esmaga a ação das personagens que nela tentam se mover. De forma sutil, acredito que o espetáculo proponha uma experiência que nos chama de volta ao absurdo da existência, no sentido de sua cegueira e automatização contínua, que retira de nós o controle e a vivência de nossos atos e relações. O exemplo maior de tal aposta talvez resida na presença das rubricas no último ato do espetáculo e, sem dúvida alguma, da forma construída para sua expressão. São rubricas que desenrolam a ação de forma violenta e vertiginosa, de forma quase cega e espetacularizada. Para isso, duas repórteres assumem as rubricas, narrando ao público a vertigem de eventos vividos pelas personagens que nem mesmo elas próprias parecem acompanhar. Cria-se algo impraticável, uma ação que nos devolve – de alguma forma – certa falência relacional das partes que componhem aquela realidade ali compartilhada. Assim creio, Sinfonia Sonho preocupa-se em abrir este reconhecimento trágico da realidade contemporânea, não para reproduzí-lo, mas para denunciá-lo, para trazer a discussão seus protagonistas e seus respectivos alvos. Esse improdutivo oferecido ao público, esse final desfórico do espetáculo, me parece querer afirmar que a absurdidão da nossa existência não somente existe como por vezes é fruto da nossa inconsequência.

Por fim, chamo de dramatorgia uma busca que se dá além do texto dramático. Neste neologismo, junto as palavras dramaturgia + ator + orgia para tentar dar conta de um jogo que se contrói a muitas mãos. Quero dizer: a dramaturgia – como a vejo – é um emaranhado de vozes, discursos e tentativas. É uma orgia no sentido caótico do encontro das diferenças. É também o ator, concentrado e multiplicado. Dramatorgia no sentido de tê-los – os atores – em mim reunidos, de pensar a cena para suas vozes e corpos, de querer colocá-los em situações que me pareçam interessantes de colocá-los, para multiplicar sua potência em expressão. A dramatorgia como percurso da fruição nossa e do espectador. Como materialidade feita de corpos e não somente de palavras.


[1] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/09/sobre-o-titulo.html;

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Capítulo 7 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro