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quarta-feira, 4 de abril de 2012

“Paternidade devidamente dividida”

[...] está para acontecer. são 13h50 e marcamos para 15h. estou terminando de juntar papéis, vontades e sonhos embrulhados para abrir aos meninos do elenco algumas questões que me são essenciais e que por isso mesmo devem ser fatiadas e degustadas com prazer. não gente, sem prazer não dá nem para sair de casa (nesse calor). tem quer ser com muito tesão e vontade. vamos lá: referências, texto impresso, agenda para marcar próximos encontros. no caderno meu, aquele que fiz encadernando 100 folhas em branco, a última escrita foi no dia 17 de janeiro. eu de fato me dei férias quando percebi que quero ir junto mesmo, sem anteceder dentes. sem anteceder desejos e fomes minhas, solitárias por vezes. portanto, hoje tudo começa. hoje tudo ao mesmo tempo [...] [1]

O trecho acima está na postagem Encontro Um, publicada no domingo 13 de fevereiro de 2011. Já em fevereiro, comecei a realizar encontros periódicos com o elenco. O objetivo principal era se encontrar para discutir a filosofia de Deleuze e Guatarri. Cada ator recebeu por correio o capítulo As Máquinas Desejantes. Nossos encontros foram evoluindo lentamente por pequenos trechos deste capítulo. No blog, fichamentos dos encontros registravam opiniões e questões debatidas. Nesta época, cursando a disciplina de Projeto, eu acabava gastando com o elenco algumas questões que, porventura, estivessem se mostrando pouco sensíveis ao desdobramento criativo.

Uma questão que me procupou durante nossos encontros foi, justamente, não exceder o corpo de referências. A cada debate muitas referências surgiam, ma nunca houve a pretensão nem sequer o interesse em debatê-las. Já tínhamos uma referência base que era extremamente complexa, de forma que não me pareceu interessante somar outras mais a discussão. O que fiz foi trazer a cada ator um corpo narrativo contra o qual rebateríamos os conceitos estudados. Assim, sorteamos cerca de 100 postagens do blog Lendo Árvores e Escrevendo Filhos para cada ator. O que chamo de “corpo narrativo” seria justamente aquilo que um poema poderia trazer a cada ator: um contexto específico e autônomo, produzido de maneira dissociada do nosso espetáculo. Tal corpo seria um espaço sobre o qual lançaríamos questões e desdobraríamos nossas discussões. Um corpo narrativo ou, em outras palavras, uma espécie de exemplo (que servia de corpo as nossas indagações). Mais que isso, com o debate a partir das poesias, começamos a intuir personagens e situações dramáticas. Foi pela análise do blog que encontramos, por exemplo, o verso mãe, quero virar música, que acabaria sendo central a nossa ficção. A partir do blog – e dos sorteios aleatórios – cada ator encontrou desdobramentos possíveis para a trajetória de seu personagem, ainda pouco estruturada. Durante estes encontros, estive atento para colher tais fagulhas e seguir reunindo tais pedaços pois saberia que a qualquer momento eles seriam necessários.

A própria linguagem poética, repleta de figuras de linguagem muito específicas, começou a ser discorrida em nossos encontros. Como a dramaturgia seria escrita por mim, me pareceu também importante colocar os atores em contato com a minha maneira de escrever. Não que esta fosse única e imutável, mas sem dúvida alguma já se configurava como um dado tipo de escritura. Quais palavras? Quais tempos? Como os verbos se conjugam e com quais cores e intenções? Sempre tive receio de fazer dramaturgicamente uma peça intragável por conta de algum excesso poético. Com Sinfonia Sonho busquei tornar possível a poesia e com algum tempo de processo, fui percebendo que para tal “bastava” não fazer força nem exceder a minha intenção. Durante os encontros com os atores, fui testando possíveis sinopses apenas para sondar a recepção de cada um. Desde sempre, a opinião do elenco sobre o desenrolar da dramaturgia foi determinante. Em diálogo, fomos desdobrando inúmeros lugares juntos (sem que eu desse fim ao mistério que era justamente saber qual ficção colocaríamos em cena). Consta no projeto:

Este projeto deseja dar corpo às metáforas, somando teatralidade à realidade. Deseja-se olhar para o real por um ponto de vista que seja capaz de desprender do cotidiano certa poesia, alguma teatralidade. Interessa-me criar este espaço outro no qual eu, espectador, me veja sendo movido e talhado, refeito e aprimorado. Uma realidade frente a qual eu exija de mim certa auto-análise, uma realidade que me devolva a mim mesmo via diferenciação e não via espelhamento.

Em nosso primeiro encontro, eu deixei bem claro qual era o propósito de nosso encontro. Tratava-se de um caso de Paternidade devidamente dividida (PDD). Quer dizer: eu havia escolhido aquelas pessoas para dividir comigo a responsabilidade sobre um novo filho. Sinfonia Sonho (que ainda não tinha sexo nem corpo quiçá nome) era um filho de muitos pais. É sempre assim com as coisas que crio. Mas agora era ainda mais especial, porque a princípio o projeto se estruturava a partir dessa confusão criação e vida, artista e pai, filho e obra. Na postagem intitulada sonho, eu tento descrever um sonho que tive um pouco depois de nosso primeiro encontro:

Márcio, Virgínia, Daniel, Laura e Adassa,

O que eu tenho para contar a vocês é o meu sonho. Eu diria o meu filho. Eu acabei de acordar, é sério. É muito estranho. Eu estou diante do computador. Tem uma caneca com leite muito gelado. Um pote com biscoitos de damasco sem açúcar e três passatempos (eu comi já um) recheados. Estou hipoglicêmico (acabei de medir a minha glicemia, sou diabético, deu 46). Ou seja, estou trêmulo e nervoso, porque não sei se consigo acreditar em tudo o que aconteceu em menos de cinco minutos. E seria bom que eu conseguisse acreditar, porque aconteceu.

Aos poucos escrevendo, eu acho que vou perdendo o incrível da coisa. Mas é que eu sonhei com a gente. E estar hipoglicêmico faz com que as coisas não se distinguam muito. Por isso a sensação de ainda estar sonhando. Eu acordei com essa frase na cabeça "Márcio, Virgínia, Daniel, Laura e Adassa, o que eu tenho para contar pra vocês é o meu filho" [...].[2]

Com a frequência dos encontros, começamos a discutir outros assuntos para além da referência principal. Começamos a especular sobre os temas e fomos, juntos, tomando decisões. Por exemplo: decidimos que não iríamos colocar em cena uma peça que falasse sobre teatro. Não queríamos uma peça que falasse ela mesma de sua própria criação. Queríamos brincar de ficção, construir personagens e por meio disso narrar um acontecimento que se assentasse numa lógica familiar. O filho como filho e não como obra. Passado o processo, hoje percebo que a multiplicidade do tema “criação” se mantém em nosso espetáculo: em cena um drama familiar, ao mesmo tempo que criacional em termos artísticos. Kevin que é filho é também uma criança em movimento por conta da peça teatral que ensaia em sua escola. Há a criação artística, porém, é como se não tivéssemos consciência dela: ela é saldo de uma estrutura anterior, basal, familiar.

Aos poucos o processo foi desembocando no todo, mas tudo sem imposição nem força. Não foi o caso, em momento algum, de selecionar aquilo que aconteceria e que precisaria virar cena, dramaturgia ou intenção. As coisas vão e voltam num processo, estão em movimento e livre cruzamento. Não é preciso intencionar tanto assim. Após inúmeros encontros, tivemos cerca de um mês de intervalo até o início dos ensaios. Nesse tempo, finalizei o projeto e dei conta da produção necessária para a realização dos ensaios, além de também fechar o desenho “final” das personagens, sinopse e escaleta de cenas.

Cabe pontuar que o elenco que julgava fechado desde o fim de 2010 acabou sofrendo modificações. Logo no início dos encontros, o ator Daniel Carfa teve que se retirar do projeto por indisponibilidade de tempo. Em seu lugar, convidei Dan Marins, integrante do Teatro Inominável e com o qual eu havia trabalhado em Não Dois, minha montagem de Direção V. Com cinco atores (Adassa Martins, Dan Marins, Laura Nielsen, Márcio Machado e Virgínia Maria) achei que o elenco se completaria, mas após um encontro com o amigo Andrêas Gatto, acabei convidando-o também. Assim, o elenco principal estava composto por seis atores. Mas um processo é mesmo movimento. No decorrer, eu viria a perceber que uma personagem que a princípio era apenas mencionada, precisaria estar ali, em ação perante a audiência. Para tal, convidei o ator Gunnar Borges, que já havia manifestado interesse em participar do projeto e que assumiu também a produção da peça, como aluno da disciplina Legislação e Produção Teatral. Borges ensaiou bem menos que o restante do elenco (escolha feita por conta da própria constituição da sua personagem). Por último, duas semanas antes da estreia, precisei trazer outras duas atrizes do Inominável para a completar a cena: Flávia Naves e Helena Cantídio (atrizes da montagem Vazio é o que não falta, Miranda) interpretaram, respectivamente, as repórteres Carolina Wellerson e Joana Bravo. Ao todo, nove atores em cena.


[1] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/02/o-primeiro-encontro.html;

[2] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/02/sonho.html;

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Capítulo 6 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro.