Crítica da peça Sinfonia Sonho, de Diogo Liberano, do grupo Teatro Inominável
Autor: Humberto Giancristofaro
Kevin (Márcio Machado), menino de 9 anos que acaba de se mudar com os pais e a irmã para uma casa nova, tem um desejo que expressa o motor da peça Sinfonia Sonho de Diogo Liberano: ele quer virar música. Da mesma forma, cada passo tanto da dramaturgia quanto da atuação indica um desejo de mesma natureza. A direção busca operar uma mudança de valores, por meio de uma revolução das sensações. Ou seja, fazer do corpo dramático um acontecimento teatral alinhado à percepção causada por uma sinfonia. A base desse experimento é guiada por Diogo Liberano de dentro do acontecimento. Sentado em cena com o roteiro em mãos, ele incorpora o narrador e presentifica o diretor, fazendo as vezes de um maestro para apontar o ritmo, a textura e a amplitude dos eventos e dos personagens.
O que de fato é interessante na mudança desejada, não é aonde ela quer chegar, mas a experiência de mudar. É nesse ínterim que a peça ocorre. Ela é uma peça enquanto acontecimento. A família de Kevin nunca completa a mudança de casa, as caixas estão fechadas e a iminência de voltar para a casa antiga ou ir para outro lugar paira no ar. Mesmo no núcleo familiar as mudanças não param de acontecer; a mãe está sendo transferida, o pai está largando a medicina, a filha está fazendo aniversário (a semana toda, ela brinca) e Kevin não para de tentar virar música. É uma família enquanto acontecimento. Assim, o acontecimento se torna um personagem nessa peça.
O espectro desse personagem-acontecimento é Tomas (Gunnar Borges), filho desaparecido do casal vizinho, que espreita a trama como um fantasma. Ele não está lá, pois, na narrativa, foi levado por balões de ar em seu aniversário. Porém, por meio de uma atuação muda e repleta de elementos da dança, Tomas vivifica as ideias dos outros personagens em meio às cenas. Seus passos são sempre claudicantes e, acima de tudo, escapantes – como é a qualidade inerente ao acontecimento. Na verdade, a força proveniente da expressão corporal de todos os atores é crucial para que esse personagem-acontecimento se sustente durante o espetáculo. Os corpos dos atores funcionam como usinas e cada um pode afetar e ser afetado pelos demais, todos são potências causais. As cenas são tocadas como notas musicais e exploraram a vitalidade desse afeto, misturando os efeitos provenientes do encontro dos corpos para fazer acontecer uma sinfonia.
A proposta de Kevin subverte a lógica de que um corpo nunca muda de natureza – ele apenas modifica suas qualidades segundo os outros corpos lhe afetem. Ele quer se reconstruir, transubstanciando seu corpo para tornar-se apenas afecção. Para virar música ele precisaria se desnaturar e se tornar acontecimento. Esse é o paradoxo defendido por sua mãe, Eva (Virginia Maria). Kevin insiste, porém, até encontrar uma saída. Eva é o signo da ordem no caos do acontecimento, ela é a parcela que puxa a peça para o eixo do esperado. No estado virtual, o acontecimento possui infinitos destinos, entre eles os que seguem os modelos antigos e projetam a espiral para o mesmo ponto de sua partida. Diante do absurdo vivido por Eva, durante o massacre ocorrido na escola que dirige, ela escolhe a saída comum do acontecimento, escolhe atualizar sua experiência de acordo com o senso comum, ao invés de compactuar com as possibilidades de liberdade que Kevin lhe aponta. Ela força tudo para o eixo, enquanto Kevin desmancha os gonzos. Por meio dessa antítese a ação de Kevin fica mais explícita. Contudo, ele preserva a esperança de que sua mãe faça parte da sua sinfonia.
O pai de Kevin, Franklin (Dan Marins), por sua vez é o esgotado no olho do furacão. A ordenação imposta por Eva, a princípio, é que produz o estado de mudança. Para ir em frente na vida e agarrar sua promoção, ela é quem movimenta a roda da fortuna para toda a família. Franklin, contudo, não tem seu gosto pela vida renovado com isso, ao contrário, não vislumbra possibilidade alguma para sua existência sob as novas condições que lhe vão sendo impostas. Ele tem que formar uma série exaustiva de tarefas para sustentar a nova casa, mas não pode fazê-lo por sua profissão, já que precisa cuidar das crianças; sua voz foi estancada pela propriedade provedora da mãe; sua imagem de pai fica dissipada, extenuando a sua potência de agir no espaço da casa e da família. Tudo isso fica impresso pelo corpo do ator, ele apresenta solos de movimentos entremeados às cenas, nos quais procura resgatar sua vitalidade, mas é sempre fadado a passos que o exaurem cada vez mais. Não são as possibilidades que acabam para Franklin, mas as potências de agir. Neste estado fissurado é que o corpo de Franklin pode vislumbrar a proposta fissurante de Kelvin. Esta é uma outra potência, fora do eixo. O estado esgotado dele é que o capacita a ouvir a inaudível sinfonia com a qual Kevin sonha se tornar.
A aproximação com o casal de vizinhos, Moira (Laura Nielsen) e Corley (Andrêas Gatto), é o que leva o desejo de Kelvin para sua máxima potência. A crise do casal, que se torna cada vez mais evidente, traz consigo o gatilho que Kelvin estava procurando para dar início à sua transmutação. Um casal com uma crise particular que traz uma disjunção alojada no ventre. Moira, que perdeu seu filho, sofre de uma gravidez psicológica. Mesmo sem compactuar com a mulher, Corley faz parte desse drama e não sabe como solucioná-lo. Vistos juntos, eles apresentam mais uma peça da teoria do desejo. Desejando a volta de seu filho desaparecido, eles desejam um conjunto de realidade, não um objeto. A ligação do desejo a um objeto é uma visão por demais econômica, em que a falta criaria o desejo. Nesta outra visão, o desejo é de um todo, de um cenário. Eles querem recriar a realidade do filho e distorcem a realidade para reavê-lo. Esta distorção forja um novo equilíbrio, sem o qual se corre o risco de mergulhar num nível de desadequação que pode chegar a ser fatal. Esse equilíbrio depende de um agenciamento entre as novas regras imaginadas e as regras anteriores, normalmente, num jogo de altos e baixos, defesas e negações Corley é a polaridade de negação dessa realidade, mas ainda está dentro deste mesmo jogo. Livrando-se do ponto de vista distorcido, Kevin obtém a ferramenta conceitual para virar música. Ele apreende que seu desejo não é de um objeto e sim de uma paisagem que deve ser construída. Para devir-música ele precisa agenciar todo o conjunto de sensações que o levem a isso, incluindo toda a sua família.
Sua irmã, Célia (Adassa Martins), também interpreta o desejo do irmão como o de um objeto, mas não projeta a falta como elemento desse desejo, pois está concentrada demais na certeza do seu êxito. Ela anseia pela hora em que ele, ao se tornar músico, será famoso. Ela traz para o irmão a calma de que o desejo é delirante e que nem por isso é implausível. Ou melhor, que justamente por isso é que é desejo. Desejar o cotidiano é simples programação, como faz Eva. Célia, com suas ideias de nunca mais crescer, por exemplo, apresenta o delírio desenfreado como a natureza do desejo. E é isso que deixa Kevin confortável para levar a cabo seu desejo.
Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, pesquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.
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Fonte: http://www.questaodecritica.com.br/2012/05/constructo/