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segunda-feira, 25 de junho de 2012

"Como um espetáculo se transforma em sonho?"

Assisti à Sinfonia Sonho pela primeira vez na sala Vianinha, na Escola de Comunicação da UFRJ, como montagem de final de curso do diretor Diogo Liberano. Saí da estréia dizendo “sinfonia sonho me musicou” tamanha beleza inscrita na tragicidade poética de um tempo de violência, alijamentos, exclusões, olhares que se voltam para dentro e, num movimento epifânico, porém covarde, esquivam-se de perceber o fora, o que não pertence e por isso mesmo interessa, o Outro do discurso, a diferença. 

Diogo Liberano constrói uma dramaturgia tecida pelas idiossincrasias e pelas perversões cotidianas que, quase por pouco, escapam à fala das personagens. Não por não serem notadas, mas por levarem sempre a outro lugar, remetendo o espectador ao plano, que chamarei aqui de metafórico, tão bem explorado na encenação. A metáfora existe não só como figura de linguagem, mas como possibilidade de evasão, saída pela porta dos fundos, fuga literal da opressão imposta por movimentos repetitivos. Metáfora de sonho, sonho que constrói outros espaços possíveis: o espaço do teatro não seria ele mesmo esse possível? Sinfonia Sonho traz o dialogo lúcido com o que se convencionou chamar de contemporaneidade. A amarga lucidez das crianças. A ilusão enganadora dos adultos. A poética reinvenção das crianças. O vazio inoperante dos adultos. A perversa observação das crianças. A hipócrita aceitação dos adultos. Somos, em um ritmo pungente, levados à troca de lugares, a abrir nosso campo de percepção a uma abordagem sensível e política do ser-estar no mundo. Meta-fora. 

No limite da tensão entre a ruptura com o universo absurdo e institucionalizado – a família é foco da leitura sensível do diretor – e o de ser engolido pela máquina midiática – a cobertura jornalística ganha espaço decisivo na concepção – existem sujeitos imersos no campo minado da angustia, do desequilíbrio, da desrazão. O menino Kevin quer virar musica, nascer não em outro corpo, mas ser sinfonia, arte. O menino aponta para o que não se espera de uma criança, traz na fala elaborada o desejo potente que corajosamente compartilha em família. Desejo não é metáfora, afirma com outras palavras Kevin. Como desejar a música encarnada? Como um corpo torna-se uma sinfonia inteira? 

Como um espetáculo se transforma em sonho? 

Diogo Liberano responde recriando no espaço uma abertura para que possamos enxergar um gesto não cotidiano, movimentos que fogem do estigma, do precário entendimento das coisas, do automatismo. Ao contrário, já na primeira cena, no retrato inicial, em que o diretor se coloca como autor (Liberano está em cena anunciando espaços, personagens, também ele personagem da própria criação), atores lado a lado dispostos em cadeiras criam uma partitura de ações que se assemelham a notas musicais, à imagem de ondas sonoras de um equalizador digital. Corpos que produzem imagens que levam a outras imagens e sentidos. É assim que vemos Célia (Adassa Martins) se relacionar com o irmão, com os pais e com os vizinhos, desenhando no espaço cênico imagens de leveza, fragilidade, inquietude, em uma curiosa tentativa de talvez desvendar o mistério das coisas, o que está por trás da palavra, o que lhe escapa. Adassa cria um corpo-texto, é tão precisa na evocação permanente do mundo que se transforma não na menina de sete anos que perdeu um olho ao ser perfurado pelo espeto de fondue, mas é ela mesma a própria perfuração, tamanho o desejo de descoberta daquilo que não é dito, mas que existe violentamente na casa, na vizinhança, na escola. Ao final, apos perder os dois olhos, em uma cena brutal, assistimos a um corpo que transcende a cena, apontando um outro lugar, talvez o nosso próprio. Como olhar para a cena? Como olhar para a brutal realidade que nos cerca? Estas são algumas das questões que “Sinfonia Sonho” nos coloca.

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Por Gabriela Lírio

Professora Doutora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)