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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

"Tempo morto, tempo posto. Metáfora morta, metáfora..."

Por Valmir Santos

Foto de Paulo Teotônio

O mundo está encolhendo. E os artistas da companhia Teatro Inominável, do Rio de Janeiro, revelam sua angústia diante do infantilismo adulto. A patologia se espraia, viral, notória, nas veias públicas e privadas. Daí o cometimento do antivírus “Sinfonia Sonho”, celebração e cerebração das artes cênicas com o frescor e a grata surpresa pespegados pelos jovens criadores cariocas.

Nesse espetáculo estranho, violento, trágico, corrosivo, a dramaturgia espreita um acontecimento real: o assassinato de dez crianças e o ferimento de outras colegas de uma escola do bairro de Realengo, em 2011, por um rapaz doente, um ex-aluno. O espetáculo tangencia o episódio midiático e vai pisar em outras sombras colaterais, como a família disfuncional e a terrível incomunicabilidade entre pessoas que moram sob o mesmo teto.

As referidas distâncias são apropriadas como um dos dispositivos de cena. O diretor e dramaturgo Diogo Liberano corrompe, colaborativamente, as pistas facilmente assimiláveis sobre duas famílias vizinhas. Não há caracterização de personagem entre os nove atores encarregados de dar a ver aos espectadores o núcleo pai/mãe/filho/filha e o núcleo do casal que perde o filho único, fantasma a vagar durante a sessão.

Um narrador-autor pontua rubricas, fragmentos e fraturas de um texto espargido pela partitura dos movimentos. Fieira de “quebras” radicam a noção de que o espectador é estimulado a construir a história sobre aquilo que o mobiliza. Ou rejeitar tal afluência, o que seria uma pena esquivar-se dos silêncios, ruídos e metáforas que encontram moradas em outros recônditos não-verbais desse campo fictício fértil em analogias.

O encaminhamento artístico é o da livre escolha, a mesma que fez a companhia estudar durante meses as obras “O Anti-Édipo”, dos filósofos Félix Guattari e Gilles Deleuze, e “Precisamos Falar sobre o Kevin”, do romancista norte-americano Lionel Shriver, até ser atalhada pelo noticiário de sua cidade. A realidade infiltrou-se no processo criativo que já tinha a crítica da representação em alta conta –, aliás, uma das bases aglutinadoras do Inominável desde 2008, com então graduandos da UFRJ e da UNIRIO (entre os orientadores de “Sinfonia Sonho” estão os professores e pesquisadores Eleonora Fabião, Ronald Teixeira, Desirée Bastos e José Henrique Moreira).

Ao contrário do que pode supor o espetáculo não abandona seu interlocutor à deriva, patinando no plano das teorias. Os códigos de comunicação estão acessíveis, organizados engenhosamente na economia do espaço cênico (cadeiras, uma mancha verde expandida no tablado). Na incisão do desenho de luz sobre os inconscientes em latência. Na música incidental nada óbvia se se levar em conta o título e o desejo do menino de 9 anos que, na peça, é resoluto ao eleger essa arte como ofício, qual música interior. E principalmente no preparo técnico dos atores capazes de cumprir rigorosamente as frações de tempo e lugar sem deixar de afetar o público com os rompantes emocionais das crianças e adultos focalizados sob a condição humana.

O contraditório fica por conta da meta representação, quando o espetáculo realça o telejornalismo sensacionalista com a caricatura de uma apresentadora e uma repórter, atrizes oriundas da plateia. Os microfones em punho e o coloquialismo frouxo da própria cultura televisiva desviam demasiado da organicidade genuína exercida com sagacidade até então, passado pouco mais da metade.

Em seus desafios vencidos, que não são poucos, “Sinfonia Sonho” é mais um exemplo recente de como os departamentos universitários de artes cênicas potencializam o teatro de pesquisa desde a sua cadeia genética, ou seja, o pensamento e a prática do artista em formação propenso e estimulado a ousar com causa, beleza e tutano.

Crítica publicada em ocasião do XIX Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente/SP
[http://www.fentepp.com.br/noticias/critica-teatral--tempo-morto-tempo-posto-metafora-morta-metafora-por-valmir-santos/41]