Foto de Daniel Protzner
“Sinfonia Sonho”
(*), como descrito no programa do espetáculo, nasceu do trabalho de formação de
um grupo de artistas, então estudantes da UFRJ, cujo processo partiu do estudo
do livro “O Anti-Édipo”, de Gilles
Deleuze e Félix
Guattari, e da adaptação do romance “Precisamos Falar sobre Kevin”, de
Lionel Shriver, que, em linhas gerais, tem como fio condutor a narração de uma
mãe em busca de entendimento do que teria levado seu filho adolescente a
cometer um massacre em sua escola. Casos que, até muito pouco tempo atrás,
pareciam fazer parte de uma realidade distante, coisas que só existiriam em
países cuja cultura do capitalismo e esquizofrenia (citando os próprios Deleuze
e Guattari) chegou a tal ponto capaz de gerar tamanha tragédia.
Mas, no meio do
caminho, o coletivo (formado pelo diretor e dramaturgo Diogo Liberano e pelos
atores Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Virginia Maria, Márcio
Machado, Laura Nielsen e Gunnar Borges, além dos professores/supervisores)
viu-se atravessado pela tragédia ocorrida em uma escola municipal do Rio de
janeiro, no bairro de Realengo, tendo que modificar, assim, seu percurso
dramatúrgico inicial. Esse entrecruzamento de camadas entre real e ficcional,
de narrativas próximas e distantes, do individual e do coletivo, do
comportamento adulto e do infantil, do absurdo e do cotidiano, impregnou toda a
linguagem que alicerça o espetáculo – entre o que está longe e perto, entre o
quase naturalismo e o total estranhamento, entre a crueza o objetiva das palavras
e a existência da poesia.
O retrato antigo de
uma família arquetípica é o ponto de partida de “Sinfonia Sonho”, cujo centro
do quadro apresenta ao público quatro personagens vendados. Essa composição
cênica harmoniosa é invadida e revelada pela entrada de um narrador, que irá
nos apresentar, de maneira distanciada e objetiva, quem são aqueles personagens
e o que os une ali. É justamente essa presença afastada, de fora de ação, que
reforça a ideia tão presente na dramaturgia de quão complexa e impalpável é a
tentativa de se explicar a violência e a dor, causa e consequência diretas do
impacto de uma tragédia coletiva. O que o grupo propõe é “uma
possibilidade de expressar o impossível”, diz Diogo Liberano no programa da
montagem.
A montagem não busca
explicar a tragédia, apenas a apresenta, problematiza-a, numa espécie de
composição quadro a quadro, em que cada personagem delineia sua melodia no
espaço vazio delineado no chão. A economia nos recursos de cenário e figurino
permitem uma neutralidade em que se ressalta o desenho corporal e rítmico do
jogo dos atores e dos personagens – como na cena de ‘apresentação dos
personagens’ em que, numa espécie de dança de mãos, eles se contém uns aos
outros para que não possam sair de seus lugares ou realmente se revelarem. A
sinfonia do título se reproduz na partitura corporal que cada personagem
apresenta, aliado ao sonho marcado não só pelos momentos em que Kevin tenta se
tornar música quanto pela permanente presença dos atores à margem da ação
central.
A crueldade expressa
no jogo infantil – referência que me lembrou muitas vezes recursos utilizados
na dramaturgia do absurdo por mestres como Arrabal e Beckett – serve de base à
relação entre os irmãos Célia e Kevin, numa alternância quase cúmplice,
concedida, de proteção e submissão. Mesmo cega de um olho, Célia enxerga o
delírio que seus vizinhos estão submetidos e é capaz de compreender o irmão ao
vê-lo indignado quando sua mãe diz que o fato de ele querer se tornar música é
metáfora. Os adultos é que se encontram em mundos imaginários, que insistem em
não querer aceitar a realidade enquanto seus mundos interiores parecem desabar
(Eva que insiste em fingir que está tudo bem enquanto corre cegamente em busca
do seu sucesso profissional, e Moira, incapaz de aceitar a morte de seu filho
Tomas, vivendo uma gravidez delirante).
Quando irrompido
pela presença de duas jornalistas, o trabalho parece perder essa complexidade
apresentada até então para a caricatura do sensacionalismo. É verdade que a
mídia costuma se comportar de maneira ultrajante, superficial e desrespeitosa
em fatos trágicos. Mas a impressão é que a entrada desse elemento no espetáculo
não acrescenta camadas de problematização às questões abordadas muito bem até
ali pela dramaturgia. A presença dessas personagens acrescenta dinâmica à ação,
estabelece uma conexão com a realidade banalizada cotidiana, mas, como na
mise-en-scène da TV da vida real, pode desfocar a atenção do espectador do que
realmente interessa.
As banais discussões
de Célia e Kevin escondem reflexões sobre temas como a incapacidade de nos
enxergamos mesmo que debaixo de um mesmo teto, o fracasso das relações inter e
extra-familiares, a necessidade revolucionária de libertar o desejo, ou, para
Kevin, o direito de sonhar só com o que se quer e de virar música.
Tomas também cumpre
essa função de representar a incapacidade de seus pais de lidar com o horror da
vida real, optando pelo delírio. O personagem vaga pela cena durante todo o
espetáculo, sempre presente na moldura, mas ausente na ação. Relação que rompe,
num choque entre o onírico e o real, ao se dirigir ao público e narrar o dia em
que resolveu tentar voar com balões cheios de ar amarrados aos pulsos e acabou
virando comida de urubu.
Neste quadro, as
crianças já perderam a inocência, a possibilidade de “não sonhar apenas
dormindo”, foram atravessadas pela realidade da pior maneira. São elas que
pontuam o quão absurdo pode ser o cotidiano.
(*) “Sinfonia Sonho”
foi apresentado dentro da programação do Festival Estudantil de Teatro, no Galpão
Cine Horto.