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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Uma poética de incompreensão para o horror"

Por Luciana Romagnolli

Foto de Paulo Teotônio

No trabalho criativo de um grupo que se batiza como Teatro Inominável, cabe o espanto que se sabe incapaz de nomear o horror. Observa-o, encara-o, mas não tenta explicá-lo. Sem nome, não há definição nem familiaridade possíveis, só estranhamento. Esta é uma distinção essencial entre o espetáculo “Sinfonia Sonho” e o romance que nutriu sua dramaturgia, “Precisamos Falar sobre o Kevin”. Enquanto a literatura da norte-americana Lionel Shriver nos apresenta o ponto de vista parcial de uma mãe-narradora que revê as memórias familiares puxando algum fio de explicação para o massacre cometido pelo filho, a obra do diretor e dramaturgo Diogo Liberano desprende-se da ânsia por sentido, descrê da análise psicanalítica e da possibilidade de compreensão.

Outra divergência central está na ausência de culpa – ao menos individualizada. Kevin, o filho, era o autor das mortes e, portanto, o culpado inegável no livro. Sobre sua mãe também pairava o peso da responsabilidade que se confere aos progenitores. Nesse ponto, contudo, o espetáculo se desvia, seguindo a liberdade natural de confecção de uma nova dramaturgia já prevista pelo diretor desde o princípio, mas repentinamente atravessado pela notícia do massacre de alunos em uma escola carioca por um atirador de 23 anos. Os abalos da tragédia real foram sentidos e absorvidos pelo grupo, de modo que a violência que interrompe a infância se consolidou tematicamente, e a atribuição de culpa parece tão impossível quanto a tentativa de explicação.

Os personagens densamente delineados pela autora norte-americana sobrevivem na encenação despregados de grande parte do contexto original, mas um fato significativo se mantém: a cegueira de olho de Célia, irmã de Kevin. Alusão ao Édipo, cujos olhos foram furados, ao qual o diretor carioca se contrapõe tomando por referência o “Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari, adicionando um vórtice de sonho, onde os desejos são livres, à estrutura familiar piramidal. Mais que isso, Liberano apresenta a família toda fantasiada com tapa-olhos, numa imagem pungente de um núcleo cegado, que recorda uma frase do “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago – “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. 

O grupo carioca se coloca nessa posição de olhar de fora uma tragédia contemporânea, ciente de que não tem como acessá-la por dentro sem preencher falsamente vazios que desconhece. A arquitetura do espaço cênico funda esse distanciamento. Enfileirados em cadeiras, os atores, com seus personagens latentes, acompanham a leitura do texto pelo diretor-narrador, até que chegue sua hora de ir ao centro do palco representar. A apropriação da realidade é mediada tanto por essa narração quanto pela intervenção de duas jornalistas, que, tal como o narrador, chegam ao palco vindo da plateia e reafirmando, assim, a conexão do grupo com o real, com a população e a cidade – não apartados na coxia numa arte descolada do mundo.

Ao mesmo tempo, não há pretensão de realismo. A presença dos atores sentados enfrentando com gravidade a plateia contém a imobilidade da ausência de futuro, mas também uma postura de desafio antirrealista que ajuda a estabelecer a tensão latente em cena. A tragédia é exposta como encenação, como construção coletiva de uma poética que tente elaborar o horror – enquanto, para os personagens adultos, não ser capaz de enfrentar o horror deflagra novas tragédias.

A sinfonia que batiza o espetáculo se traduz em partituras físicas que fazem de cada personagem uma linha melódica distinta – o mais perto que podem chegar do sonho de Kevin de tornar-se música. A pesquisa corporal permitiu que esses seres se comunicassem por posturas e gestos, pelo modo de seus corpos se sustentarem no chão e se moverem no ar, expressando uma essência intangível. Kevin e Célia são as composições de personagens mais sólidos – as crianças despidas de ingenuidade. O pai delas e o casal de vizinhos vagueiam no ar etéreo do luto. A mãe se fixa na caricatura do automatismo apressado da vida adulta, como se nunca estivesse de fato ali. Ao contrário de Thomas, o filho dos vizinhos, tão presente em sua ausência.

Liberano recortou do romance trechos passageiros que no espetáculo se dilatam reescritos poeticamente, como o ensaio de Kevin para a peça da escola, do qual nasce seu desejo de ser música. Com isso, o dramaturgo problematiza não só a representação, mas a possibilidade de colocar-se no lugar do outro e compreender o que é diferente de si: uma experiência de alteridade. A música escapa do sistema racional, como outra forma de expressão fora da linguagem. O sonho – materializado em Thomas – exerce semelhante função no espetáculo, um espaço de manifestação do eu, do não-decodificável. 

A construção da infância, dos jogos de cúmplice provocação entre irmãos, faz pairar sobre o espetáculo uma peculiar lógica infantil, com sua dilatação da razão, que soa nonsense em um mundo regido por adultos, mas sublinha o absurdo desse mundo. O delírio da realidade não acomete só a mãe de ego inchado pela carreira ou a outra, de barriga inflada por uma falsa gravidez. É uma sociedade inteira que participa do delírio. Veem-se adultos com fraquezas infantis e crianças que precisam responder a demandas adultas: identidades e maturidades distorcidas. “Às vezes, o aniversário não funciona”, diz Kevin a Célia. A vida não direciona os desafios obedecendo faixa-etária.

As duas jornalistas que enfim irrompem em cena trabalham sobre o reforço de clichês do sensacionalismo midiático diante da tragédia. Em suas ações não há o espaço da dúvida. Nisso, entram em atrito com o espetáculo, pontuado de lacunas e incompreensões. É sintomático quando uma das jornalistas pega o roteiro das mãos do narrador: o efeito do microfone e da prosódia radiofônica empostada cria uma espetacularização que se contrapõe à crueza da leitura neutra do narrador, de seu respeito aos fatos e aos espaços de absorção. O espetáculo cumpre um tempo de sustentação essencial, sobretudo, à cena derradeira.

Crítica publicada em ocasião do XIX Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente/SP