Foto de Paulo Teotônio
No trabalho criativo
de um grupo que se batiza como Teatro Inominável, cabe o espanto que se sabe
incapaz de nomear o horror. Observa-o, encara-o, mas não tenta explicá-lo. Sem
nome, não há definição nem familiaridade possíveis, só estranhamento. Esta é
uma distinção essencial entre o espetáculo “Sinfonia Sonho” e o romance que
nutriu sua dramaturgia, “Precisamos Falar sobre o Kevin”. Enquanto a literatura
da norte-americana Lionel Shriver nos apresenta o ponto de vista parcial de uma
mãe-narradora que revê as memórias familiares puxando algum fio de explicação
para o massacre cometido pelo filho, a obra do diretor e dramaturgo Diogo
Liberano desprende-se da ânsia por sentido, descrê da análise psicanalítica e
da possibilidade de compreensão.
Outra divergência
central está na ausência de culpa – ao menos individualizada. Kevin, o filho,
era o autor das mortes e, portanto, o culpado inegável no livro. Sobre sua mãe
também pairava o peso da responsabilidade que se confere aos progenitores.
Nesse ponto, contudo, o espetáculo se desvia, seguindo a liberdade natural de
confecção de uma nova dramaturgia já prevista pelo diretor desde o princípio,
mas repentinamente atravessado pela notícia do massacre de alunos em uma escola
carioca por um atirador de 23 anos. Os abalos da tragédia real foram sentidos e
absorvidos pelo grupo, de modo que a violência que interrompe a infância se
consolidou tematicamente, e a atribuição de culpa parece tão impossível quanto
a tentativa de explicação.
Os personagens
densamente delineados pela autora norte-americana sobrevivem na encenação
despregados de grande parte do contexto original, mas um fato significativo se
mantém: a cegueira de olho de Célia, irmã de Kevin. Alusão ao Édipo, cujos
olhos foram furados, ao qual o diretor carioca se contrapõe tomando por
referência o “Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari, adicionando um vórtice de
sonho, onde os desejos são livres, à estrutura familiar piramidal. Mais que
isso, Liberano apresenta a família toda fantasiada com tapa-olhos, numa imagem
pungente de um núcleo cegado, que recorda uma frase do “Ensaio sobre a
Cegueira”, de Saramago – “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os
perderam”.
O grupo carioca se
coloca nessa posição de olhar de fora uma tragédia contemporânea, ciente de que
não tem como acessá-la por dentro sem preencher falsamente vazios que
desconhece. A arquitetura do espaço cênico funda esse distanciamento.
Enfileirados em cadeiras, os atores, com seus personagens latentes, acompanham
a leitura do texto pelo diretor-narrador, até que chegue sua hora de ir ao
centro do palco representar. A apropriação da realidade é mediada tanto por
essa narração quanto pela intervenção de duas jornalistas, que, tal como o
narrador, chegam ao palco vindo da plateia e reafirmando, assim, a conexão do
grupo com o real, com a população e a cidade – não apartados na coxia numa arte
descolada do mundo.
Ao mesmo tempo, não
há pretensão de realismo. A presença dos atores sentados enfrentando com
gravidade a plateia contém a imobilidade da ausência de futuro, mas também uma
postura de desafio antirrealista que ajuda a estabelecer a tensão latente em
cena. A tragédia é exposta como encenação, como construção coletiva de uma
poética que tente elaborar o horror – enquanto, para os personagens adultos,
não ser capaz de enfrentar o horror deflagra novas tragédias.
A sinfonia que
batiza o espetáculo se traduz em partituras físicas que fazem de cada
personagem uma linha melódica distinta – o mais perto que podem chegar do sonho
de Kevin de tornar-se música. A pesquisa corporal permitiu que esses seres se
comunicassem por posturas e gestos, pelo modo de seus corpos se sustentarem no
chão e se moverem no ar, expressando uma essência intangível. Kevin e Célia são
as composições de personagens mais sólidos – as crianças despidas de
ingenuidade. O pai delas e o casal de vizinhos vagueiam no ar etéreo do luto. A
mãe se fixa na caricatura do automatismo apressado da vida adulta, como se
nunca estivesse de fato ali. Ao contrário de Thomas, o filho dos vizinhos, tão
presente em sua ausência.
Liberano recortou do
romance trechos passageiros que no espetáculo se dilatam reescritos poeticamente,
como o ensaio de Kevin para a peça da escola, do qual nasce seu desejo de ser
música. Com isso, o dramaturgo problematiza não só a representação, mas a
possibilidade de colocar-se no lugar do outro e compreender o que é diferente
de si: uma experiência de alteridade. A música escapa do sistema racional, como
outra forma de expressão fora da linguagem. O sonho – materializado em Thomas –
exerce semelhante função no espetáculo, um espaço de manifestação do eu, do
não-decodificável.
A construção da infância,
dos jogos de cúmplice provocação entre irmãos, faz pairar sobre o espetáculo
uma peculiar lógica infantil, com sua dilatação da razão, que soa nonsense em
um mundo regido por adultos, mas sublinha o absurdo desse mundo. O delírio da
realidade não acomete só a mãe de ego inchado pela carreira ou a outra, de
barriga inflada por uma falsa gravidez. É uma sociedade inteira que participa
do delírio. Veem-se adultos com fraquezas infantis e crianças que precisam
responder a demandas adultas: identidades e maturidades distorcidas. “Às vezes,
o aniversário não funciona”, diz Kevin a Célia. A vida não direciona os
desafios obedecendo faixa-etária.
As duas jornalistas
que enfim irrompem em cena trabalham sobre o reforço de clichês do
sensacionalismo midiático diante da tragédia. Em suas ações não há o espaço da
dúvida. Nisso, entram em atrito com o espetáculo, pontuado de lacunas e
incompreensões. É sintomático quando uma das jornalistas pega o roteiro das
mãos do narrador: o efeito do microfone e da prosódia radiofônica empostada
cria uma espetacularização que se contrapõe à crueza da leitura neutra do
narrador, de seu respeito aos fatos e aos espaços de absorção. O espetáculo
cumpre um tempo de sustentação essencial, sobretudo, à cena derradeira.
Crítica publicada em
ocasião do XIX Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente/SP