bom, como não cessamos ainda a busca pelo tom de cada personagem, pela forma como cada personagem se manifesta, penso que pode ser útil escrever um pouco sobre cada um deles, na tentativa de me apropriar um pouco mais de quem eles são e de deixar ainda mais claro a vocês alguns lugares imprescindíveis para este jogo dramatúrgico.
corley andrêas
tentando manter os pés no chão. literalmente, pois o desejo de evaporar é gigantesco. o desejo de sumir e dar um ponto final ao desespero é imenso. mas (e há sempre um “mas”), ainda resta em corley o amor pela mulher, pela família, pela vida etc e tal. a questão é até quando é possível aguentar? o que estamos construindo, esse lugar do corley de sempre estar fazendo frente aos problemas, batendo de frente mesmo quando ele já sabe não existir solução, este lugar é ótimo. coloca ele em ação, o tempo todo, ou tentando segurar a mulher, ou tentando se segurar. corley é de fato muito altruísta. mas a situação na qual ele se encontra deturpa um pouco suas ações. ele tende a violência, ao aprisionamento, ao controle. ele mente não como quem quer mentir para enganar, ele mente para tentar se convencer de que a realidade não é esse absurdo que parece ser.
eva virgínia
cada vez mais nojenta. desculpe a franqueza, mas eva está no auge do equívoco. completamente ambiciosa, sem ficar sublinhando isso, ela age sempre movida pelo adiante. o que vou ganhar, o que vou conquistar. tenho a sensação de que eva não está muito no presente. ela só está no presente para planejar o amanhã. o futuro, o espaço e o tempo onde tudo será ainda melhor e maior para ela (e sua família). a escuta dela está com defeito, a vista está viciada. eva não vê as coisas sempre como se apresentam, ela vê as coisas como é preciso vê-las para seguir escrevendo a sua história. as crianças são as crianças, o marido é o marido. ela se coloca muito facilmente no pedestal. ela usa escadas. e isso é genuíno. não há problema. ela lutou por tudo isso e está colhendo os frutos, mas com uma voracidade tamanha que quase fere o redor. que quase mata a própria colheita. eva vai apanhar muito.
franklin dan
dificílimo, né? tudo bem. a questão do franklin é que ele está descobrindo não haver muitas questões. ou: descobre aos poucos que as questões são menos importantes. a vida nos impõe seus lugares. e ele tá vendo isso. ele tá sabendo disso. o pai morto. vencido por um câncer. o pai é seu exemplo de falência múltipla dos órgãos. não há para onde correr em determinados momentos. e franklin está percebendo isso, entre um cigarro e outro. mas, essa inevitabilidade não o reduz, não o rende. ele sela o encontro com essa certeza irrevogável. e essa certeza irrevogável é a morte. ele era meio criança. a morte do pai o inaugurou algum lugar assim absurdo. ele não sabia lidar com isso. mas ele segue de pé, vivo, sorrindo, falando, sonhando e percebendo que a vida é isso mesmo. acho que ao contrário de eva, franklin está surpreso por existir neste tempo, nestes segundos, neste momento. sua ânsia é a de consumir os segundos e neles sentir-se indo. franklin seria um filósofo depois disso tudo. passada a saúde do corpo, como cuidar da saúde espiritual? ele um dia talvez pense nisso.
célia adassa
criança. tranquila. terrível. oito e oitenta. e no meio disso um oceano de partituras. um oceano de tentativas. célia consome o tempo. ela anda nele. sobre ele. célia não tem um olho mas tem sinapses acontecendo entre os fios de cabelo. é material explosivo sem placa sinalizadora ou cerca de segurança. ela solta faísca e é cheia de farpas. é criança, gente. célia é certa sendo errada. ela é genuína porque se alguém não lhe disser que não faça, ela vai seguir fazendo. é exatamente isso que ela está apreendendo. a sensação de maturidade se locomove também dentro de limites. poder e não poder. ser e não ser. ela descobriu que há limites. e se diverte em transitar entre tais portas. sistema nervoso. célia é um sistema nervoso exposto. é pura resposta kinestética. é aluna da linguagem. está descobrindo o que a linguagem pode fazer neste agora. ela está maravilhada (mas só quem tem consciência disso somos nós, criadores). porque ela segue sem freio nem tino. o segundo para célia é o mundo inteiro com ela interagindo. ela é terrível. ela é ela.
kevin márcio
kevin sabe não pertencer aquilo que ele não deseja pertencer. kevin sabe como agradecer e sair a francesa. kevin tem vergonha, às vezes. sabe ser mala, sabe ser maldoso. tem uma cobaia. a irmã. kevin judia dela, mas tudo com carinho. não é que ele odeie, não é que ele desrespeite, mas é só que é legal. não é? célia nunca conseguiu montar nada com o lego quando brincava com o irmão. porque ele exigia dela que procurasse as peças que ele queria usar. e isso é genuíno. kevin mudou de cidade. ele está intranquilo. ele está tomado pela possibilidade de aparecer, de ser iluminado, de usar a própria voz e o próprio corpo para ser uma coisa inventada. ele gosta de inventar. histórias, situações, climas e jogos. e já domina melhor a linguagem. ele estuda a linguagem. kevin quer saber o que é metáfora. então ele vai, e sabe. pronto. não quer dizer ser certo ou errado. quer dizer ser. verbo intransitivo. eu sou. ponto. eu estou. ponto. eu. é uma criança, não podemos esquecer. tem suas manias, birras e faltas de noção. a questão é que ele está começando a saber disso. ele está começando a saber que se falar tal coisa talvez provoque outra. ele está testando a sua capacidade de ser gente grande, afinal, é o próximo passo. esse, de virar mocinho.
moira laura
moira não acredita no fato consumado. tá tudo escrito, explícito, desenhado registrado e decorado. mas sua força se move no sentido contrário. é como se o seu subtexto fosse o tempo inteiro não posso acreditar nisso porque se o fizer nem sei o que vai ser de mim. ela perdeu. ela está fodida. moira não tem para onde ir, está desamparada. o céu roubou seu filho. ou foi ela que o perdeu? será que foi o marido? não importa, importa apenas não acreditar. como se fazendo força para não acreditar, se tornasse possível reverter a situação. moira tenta. dissimula. ela sabe que é mentira. mas não custa tentar. não lhe sobrou outra alternativa a não ser fingir que o filho partido pudesse estar aqui de novo, pudesse ter se escondido e tudo não passasse de uma mera brincadeira. não há tempo de processamento. não há cura ou solução. não há delegacia médico bombeiro nem religião. a força dela é para não pegar fogo e evaporar. ela mente não porque é mentirosa, mas porque não é mesmo possível acreditar. a mentira é tranquila, ajuda, amortece, apazigua, desenlouquece. a mentira é a forma que ela encontrou para converter desespero em prece, sabe? é auto-punição. é crença que o amanhã será menos árido que o dia de hoje.
tomas gunnar
morto. enquanto tudo está acontecendo tomas vai morrendo. que horror. morrer em câmera lenta. pesava pouco com seus oito anos. peso suficientemente leve para ser erguido por oito balões gigantes cheios de hélio. balões caros e opacos. que os pais compraram para testar os preparativos para seu aniversário. tomas comemora a sua morte em grande estilo: rodeado de estrelas, de pássaros com bicos pontiagudos, perfurado por fome frio e medo. sem mãe nem pai. sem vela nem parabéns. tomas descobriu muito rápido que não era mais brincadeira. porque o pai virou formiga. a mãe virou formiga. a casa virou maquete escolar. o bairro engoliu sua tranquilidade e virou brinquedo. as ruas viraram linhas. as luzes dos postes viraram vagalumes. meu deus, ele deve ter pensado, eu cresci muito porque o mundo fez justamente o contrário. e tão logo voou perdeu o primeiro balão. restam agora – no início da peça – apenas sete. um para cada ano completado de sua vida. o oitavo balão voou porque tomas não chegará para a festa de seu aniversário. sete balões para sete dias de vôo. o corpo de tomas vai rachar no encontro firme com o solo.
se essas palavras não ajudam, paciência, buscaremos outras. mas seu intuito é apenas desbravar, aumentar, dinamitar. vamos fazer analogias e criar relações. tá tudo no texto, só falta escolhermos o que é de fato a expressão mais potente.
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