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sexta-feira, 24 de junho de 2011

"A profanação como crítica da ideologia"

Por Vladimir Safatle


Novo livro de Giorgio Agamben procura ser um tratado teológico-político às avessas


Há tempos, Giorgio Agamben vem construindo uma obra extensa que visa dar conta, entre outras coisas, da configuração contemporânea dos desafios próprios à ação política. Responsável pela edição italiana das obras completas de Walter Benjamin, ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente com Deleuze, de trabalhos sobre teoria literária e filosofia, este professor da Universidade de Verona, nascido em 1942, é atualmente um dos filósofos mais relevantes de sua geração.
Uma das razões para tanto é exatamente sua capacidade em fornecer um quadro de análises para a situação sociojurídica que marca a política contemporânea. No entanto, esse quadro de análises foi acrescido de um pequeno livro responsável pelo esboço do que poderíamos chamar de “estratégias de crítica” que visariam desativar os dispositivos de poder na contemporaneidade.
Trata-se de “Profanações”, uma pequena coletânea de ensaios aparentemente díspares sobre temas “menores” como: a paródia, a pornografia, a etimologia da palavra latina genius, entre outros. A minoridade de seus temas é, entretanto, apenas aparente; ela é uma nuvem de fumaça que se dissipa quando inserimos “Profanações” em um espaço mais amplo composto pelas obras imediatamente anteriores de Agamben.


Biopoder e exceção


Durante muito tempo, Agamben foi visto, principalmente, como um filósofo capaz de articular reflexão estética, pesquisa historiográfica e um certo heideggero-hegelianismo a fim de dar conta de problemas maiores vinculados à linguagem em sua relação com a subjetividade. Mas, a partir dos anos 90, o filósofo italiano começa um longo movimento de desenvolvimento de outro campo de pesquisas. Partindo das vias abertas por Michel Foucault por meio das análises dos mecanismos de normatização da vida na sociedade contemporânea, Agamben colocou diante de si a tarefa de articular um amplo estudo sobre os desdobramentos dos dispositivos do poder.
Este é o objeto da série “Homo Sacer”. Dois livros desta série já estão disponíveis ao leitor brasileiro: “Homo sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua” e “Estado de Exceção”. Há ainda um terceiro, “O Que Resta de Auschwitz”, que espera tradução. No cerne de tal projeto está a compreensão de que a política contemporânea é, necessariamente, uma biopolítica.
De fato, Foucault cunhara tal termo a fim de dar conta da centralidade, na consolidação do poder na modernidade, daquilo que o filósofo chama de “administração dos corpos” e de “gestão calculista da vida”. Uma perspectiva de análise do poder que encontrava raízes nas pesquisas foucaultianas a respeito do saber médico e dos dispositivos clínicos enquanto espaço privilegiado de operação de uma racionalização da vida que se invertia em dispositivo de dominação.
Mas, aos poucos, Foucault irá ampliar suas considerações. Tratava-se de sair do regime de economia restrita própria à reflexão sobre o saber clínico, isto a fim de alcançar a generalização de uma verdadeira genealogia do poder capaz expor a lógica de inversão da razão em dominação nas várias esferas de valores da modernidade. Isto foi feito, principalmente, a partir dos anos 70.
Seguindo os passos de Foucault, Agamben insistirá no fato de que tal transformação da vida humana em objeto do poder soberano implicou em sua redução à condição de pura vida biológica, vida pronta para ser administrada pelos dispositivos ordenadores do poder ou, ainda, “vida nua”.
Neste sentido, a contribuição mais importante de Agamben no interior do debate sobre as estruturas do biopoder consiste em mostrar como a vida nua vai progressivamente coincidindo com a integralidade do espaço político, no sentido de ela ser posta como a figura hegemônica da vida que pode aparecer no interior do espaço político. Agamben pensa, entre outras coisas, nas políticas de vitimização (baseadas na dissociação entre os direitos do homem e os direitos do cidadão) e em situações contemporâneas nas quais sujeitos são, cada vez mais, jogados em zonas de anomia.
No entanto, tal análise estaria incompleta se ela não se transformasse em uma reflexão sobre a configuração contemporânea do campo do jurídico. Pois um dos problemas que fica consiste em compreender qual a estrutura jurídica capaz de legitimar um poder que reduz a vida à condição de mera vida biológica. É neste ponto que se articulam os livros “Homo Sacer” e “Estado de Exceção”.
“Estado de Exceção” é um livro ousado sob vários aspectos. Um deles está na defesa da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social.
Criada, em 1791, pela tradição democrático-revolucionária da Assembléia Constituinte francesa sob o nome de “estado de sítio”, a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em “casos extremos” aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente.
A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em situações variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente desta lógica de generalização do estado de exceção foi obra do governo francês que, no ano passado, como resposta às manifestações de descontentamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país sob situação de emergência.
Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais (o que Agamben tenta salientar ao aproximar a lógica da exceção e o problema do lugar do soberano nas teorias clássicas da filosofia política). Que o espectro da “suspensão legal” da lei, que este reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o “motor invisível” das democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que Agamben soube explorar como ninguém antes dele. Pois o esforço de Agamben consistiu em mostrar como o espectro da suspensão legal da lei é a contrapartida jurídica da transformação da política em uma zona de anomia no interior da qual os sujeitos não aparecem mais como sujeitos políticos, agentes de ações políticas de transformação.


A paródia como crítica da razão biopolítica?


Dessa forma, todo o esforço de Agamben consiste em mostrar como a centralidade da “suspensão legal da lei” na compreensão da estrutura jurídico-política da modernidade não é apenas um fenômeno localizado. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Ou seja, trata-se fundamentalmente de criticar uma noção de razão vinculada à crença de que racionalizar é assegurar a vida por meio da posição de critérios normativos de justificação intersubjetivamente partilhados.
Neste ponto, o trabalho de Agamben aparece como um desdobramento das reflexões de Michel Foucault sobre os modos de coincidência entre a norma racional e o seu outro. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização da vida.
Que o verdadeiro alvo de Agamben seja a crítica a tendência moderna em vincular razão e norma, isto ficou claro à ocasião de uma entrevista à “Folha de S. Paulo”, no ano passado. “O que está realmente em questão”, disse Agamben, “é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez ‘política’ seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas. Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de ‘profanação’, que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem”1.
Assim, fica claro que “Profanações” é um livro sobre ação política. Talvez ele seja o livro possível para a ação política em uma época em que a crítica se depara com um poder que não procura mais esconder seu núcleo de irracionalidade, mas que apresenta o irracional (“a suspensão da norma”) como momento mesmo da estrutura normativa “racional”. Poder que, como dizia Peter Sloterdjik, age de maneira cínica por legitimar aquilo que suspende sua própria legalidade. Poder que, por isso, não esconde nada e aparece como imune a qualquer procedimento de desvelamento de suas “reais intenções”.
Com “Profanações”, Agamben coloca em circulação uma estratégia peculiar que consiste em recorrer a esquemas fornecidos pela tradição da ação religiosa a fim de pensar novas categorias para o político. Novas categorias não mais dependentes, por exemplo, da noção de transgressão da norma ou de posição de novas normas, mas simplesmente da anulação do potencial normativo da norma. Um ato de anulação que Agamben chama de: desativar a norma.
Não deixa de ser interessante como Agamben parece trazer, para o campo do político, um dispositivo de crítica em operação, de maneira cada vez mais hegemônica, na estética contemporânea. Ele consiste em não tentar mais transgredir ou fornecer novas normas, mas em simplesmente mimetizar a norma de maneira tal, agir “normalmente” de forma tal que ela perca sua capacidade organizadora. Neste sentido, o ensaio de nosso livro intitulado “Paródia” é extremamente significativo.
Agamben lembra que há dois traços canônicos na paródia: a dependência em relação a um modelo existente e a conservação de elementos formais de tal modelo em meio a conteúdos ou contextos incongruentes. Ou seja, trata-se de uma maneira de seguir um modelo, assumir uma norma, mas de forma tal que a força ordenadora do modelo e da norma são “desativados” devido ao fato deles serem repetidos de maneira irônica. Agamben lembra como o termo paródia era usado inicialmente para designar uma separação entre canto e palavra, entre melos e logos, que produzia situações nas quais se cantava para ten oden, a contra-canto ou fora do canto. Maneira de desativar o logos devido à inadequação do melos que o acompanhava.
Este esquema da paródia é o que Agamben procura implementar através da sua noção de profanação. Através da paródia, o filósofo procura construir um conceito de profanação capaz de nos colocar diante de uma ação que não executa ou transgride a norma, mas que a desativa. Usando a idéia de que profanar é restituir as coisas (outrora separadas na dimensão do sagrado) ao livre uso dos homens, trata-se de pensar uma ação que instaure esse livre uso através da paródia ou da ironização do que antes estava separado e sacralizado.
Um uso irônico que, ao mimetizar o sacralizado, anula o vínculo seguro entre coisas, regras e sentido que toda noção de sagrado visa garantir. Como dirá Agamben: “O comportamento assim liberado reproduz e mimetiza as formas da atividade da qual ele se emancipou mas, ao esvaziar seu sentido e sua relação necessária a um fim, ele permite que elas se disponham a um novo uso”. No fundo, com este conceito de profanação, Agamben não parece muito distante de Deleuze com sua noção de humor enquanto o que impede a indexação segura entre norma e caso, como o que inverte o uso da norma ao fazê-la adequar-se a casos nos quais ela, normalmente, não poderia ser aplicada².
Como exemplo privilegiado aqui, o filósofo italiano nos fala de uma atriz pornô, Chloé de Lysses, famosa por seus livros de “porn art”, nos quais ela se deixa fotografar nas cenas mais tórridas com um rosto de leve enfado e indiferença impessoal. Essa seria uma forma de desativar o dispositivo fascinante da pornografia através de uma ação que mimetiza as formas próprias à linguagem pornográfica, mas de uma maneira tal que um certo “distanciamento irônico”, uma certa auto-derrisão é encenada, provocando com isto o estranhamento lá onde esperávamos apenas a repetição fantasmática. Ela age como se estivesse totalmente presa aos códigos da pornografia, mas seu rosto apático nos lembra que ela não está absorta no que faz. Daí a noção de profanação como agir paródico, agir daqueles que fazem aquilo que, no fundo, procuram destruir.
Que, de fato, tal estrutura da ação tenha uma força política explosiva, como quer Agamben, eis algo que, infelizmente, não é totalmente certo. De qualquer forma, há alguém que tentou algo simetricamente semelhante: Judith Butler com sua idéia de que a ação política por excelência estaria no embaralhamento das diferenças sexuais naturalizadas, isto através da performance de gêneros que aparecem como crítica paródica da reificação dos gêneros (Butler pensa especialmente em drag-queens). Ou seja, há uma tendência contemporânea em transformar a paródia como força política.
Mas há um ponto que merece um destaque especial aqui. É fundamental notar que tais perspectivas só podem se colocar como dotadas de forte potencial político por pressuporem uma Lei normativa que procura naturalizar seus modos de aplicação reificando aquilo que ela enuncia, Lei que esconde seu modo de separação entre a coisa e seu regime de aparição na sociedade submetida à lógica da mercadoria, Lei que, por sua vez, teria como correlato a posição de falsas consciências marcadas pelo desconhecimento ideológico. Como se estivéssemos ainda às voltas como figuras da ideologia dependentes das temáticas da reificação, da falsa consciência e da alienação na dimensão da aparência.
No entanto, nada disto é certo atualmente. É bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a própria Lei normativa tenda a funcionar de maneira paródica e auto-derrisória. Este fato está vinculado a uma modificação maior nos modos de operação da ideologia já diagnosticado desde Adorno: a ironização absoluta dos modos de vida e condutas. Ironização que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.
Se este for realmente o caso, o que dizer então de práticas políticas que procuram tirar sua força subversiva da paródia em contextos socioculturais nos quais o poder já ri das suas próprias injunções? Não seria o próprio Agamben quem melhor nos mostrou esta auto-derrisão do poder através da compreensão da centralidade da lógica da exceção enquanto suspensão legal da Lei, como se a Lei já trouxesse em si mesma o embaralhamento de seus modos de aplicação? Ele mesmo parece compreender o caráter arriscado de sua aposta, ao reconhecer que “os dispositivos de poder sempre são duplos: eles resultam, de um lado, de um comportamento individual de subjetivação, de outro, da captura deste comportamento no interior de uma esfera separada”. No entanto, o que fazer quando os dispositivos de poder parecem mimetizar nossas próprias ações profanadoras?


Vladimir Safatle
É professor do departamento de filosofia da USP e encarregado de cursos no Colégio Internacional de Filosofia – Paris


1 - "Folha de S. Paulo", 18/10/2005.
2 - Ver os capítulo de "Lógica do Sentido" dedicados à distinção entre ironia, humor e sarcasmo.


FONTE: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2754,1.shl