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domingo, 26 de dezembro de 2010

"Édipo Sem Complexo"

ÉDIPO SEM COMPLEXO (Resumo)

J.P. Vernant & V. Naquet

Do texto Édipo sem complexo, pôde-se inferir alguns pontos importantes:
Freud evoca o mito grego de Édipo com o intuito de confirmar as suas observações clínicas contemporâneas de que o amor da criança por um de seus pais e o ódio pelo outro provoca neuroses quando esta se torna adulta.
Entretanto, Vernant e Naquet questionam a adaptação de uma lenda tebana anterior ao século V a.C (quando foi composta literariamente por Sófocles) para embasar observações clínicas do século XX. Segundo o autor, Freud não veria problema algum quanto a isso pois toda a significação do mito se mostraria claramente sem o auxílio de métodos de interpretação apropriados, a qual possibilitaria extrair teorias de validade universal. Prova dessa validade universal seria justamente o sucesso constante, através dos tempos, da tragédia edipiana. Esse estrondoso sucesso seria explicado pelo fato de que se trata da representação da nossa própria psique, dos nossos desejos íntimos da infância.
Para Vernant, esse raciocínio parece estar fundamentado num círculo vicioso, uma vez que se utiliza de uma obra literária antiga para respaldar observações clínicas contemporâneas, sem a devida análise minuciosa da obra em questão. Como alternativa, propõe que Freud subordinasse sua teoria a uma completa decifração do texto dramático.
Tal procedimento estaria enquadrado nos preceitos da psicologia histórica, a qual se oporia à perspectiva freudiana. Assim, enquanto Freud parte de uma vivência não situada no contexto sócio-cultural da obra, a psicologia histórica estuda a obra em todas as suas dimensões possíveis, (lingüísticas, temáticas, dramáticas, contextuais, históricas, mentais etc), de forma a conhecer a problemática trágica dos gregos.
Somente a partir desta, segundo o autor, poder-se-ia inferir sobre os conteúdos psicológicos propostos por Freud.
Portanto, o conteúdo trágico não está ligado a uma realidade desvencilhada da história mas, ao contrário, ao pensamento de uma sociedade transitando entre novos valores da vida política, religiosa e moral. De certa forma, esses novos valores eram debatidos publicamente nos teatros gregos, já que estes eram uma espécie de assembléias populares.
Nessa fase, com o desenvolvimento do direito e da noção de responsabilidade, o homem passa a se ver, mais ou menos, de forma autônoma em relação aos deuses. Essa experiência nova exprime-se na tragédia como uma interrogação que procura decifrar até que ponto o homem é a fonte dos seus atos. A tragédia é, portanto, um momento histórico fortemente delimitado no espaço e no tempo.
Por este motivo, ao tomar a tragédia como uma espécie de sonho universal, Freud está rejeitando esse caráter histórico e desconhecendo o fato de que ela sobreviveu, na Grécia, dentro de um século, não mais que isso, sendo ignorada por outras sociedades, inclusive as posteriores daquele momento, na própria Grécia.
Outro argumento utilizado por Vernant refere-se à observação de Freud sobre a necessidade de autopunição encontrada na peça escrita por Sófocles. Segundo os autores, esse caráter de autopunição é introduzido por Sófocles, não sendo encontrado nas lendas mais antigas, nas quais Édipo morre tranquilamente no trono de Tebas, sem ao menos ter furado seus olhos.
Depois, Freud diz que, quando quis se produzir efeitos trágicos sem a utilização dos sonhos edipianos, o fracasso foi total, Vernant rebate atônito o fato de terem existido outras tragédias gregas, deixadas por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e não apenas Édipo rei. Para Vernant, o efeito da peça até os dias atuais não é causado por suas matérias oníricas e sim pelas contradições entre culpa e inocência, potência e impotência diante do destino. A tragédia apresenta o indivíduo diante de várias possibilidades de direcionar o seu caminho, mas cujo direcionamento também é determinado pelas forças obscuras e ambíguas das divindades.
Assim, há todo um conflito entre a vida quotidiana dos homens e as forças religiosas que se opõem entre si. É nesse limiar que se situa a tragédia e, dentro disso que deve ser estudada, ao contrário de Freud que a reduz aos elementos edipianos.
Por esse motivo, as idéias de Freud nunca influenciaram os helenistas os quais continuaram seus estudos como se Freud nunca houvesse falado nada, como se tivesse ficado de fora das grandes questões relevantes.
Na segunda parte do seu trabalho, Vernant e Naquet questionam o artigo de Didier Anzieu, o qual decide refazer o trabalho de Freud. Mas, ao contrário deste que visualizava o complexo de Édipo na peça de Sófocles, o seu  sucessor abrangeu tal complexo para quase todos os mitos gregos.
Mas, se assim fosse, os mitos gregos perderiam toda a sua significação, só podendo falar sobre o Complexo de Édipo. Dessa forma, eles dividem o artigo de Anzieu em dois aspectos: a parte em que ele, lendo rapidamente a mitologia grega quer aplicar a tudo o fantasma edipiano e a parte em que ele analisa a própria tragédia de Édipo Rei.
"Na origem do mundo, há Cháos, vazio indiferenciado, abertura sem fundo, sem direção, onde nada faz parar o errar de um corpo que cai. Opondo-se a Cháos, Gaia: a estabilidade. Desde de que Gaia aparece, qualquer coisa tomou forma; o espaço encontrou um início de orientação. Gaia não é somente a estável; ela é a Mãe universal, que engendra tudo o que existe, tudo que tem forma. Gaia começa criando, a partir dela mesma, sem o socorro de Eros, isto é, fora de toda união sexual, seu contrário masculino: Urano, o céu macho. A Urano, gerado diretamente dela, Gaia se une, desta vez no sentido próprio para produzir uma linhagem de filhos  que, mistura dos dois princípios opostos, têm já uma individualidade, um traço preciso, mas permanecem ainda seres primordiais, potências cósmicas. Com efeito, a união do céu e da terra, esses dois opostos gerados um do outro, se faz de maneira desordenada, sem regra, numa quase confusão dos dois princípios contrários. O céu jaz ainda sobre a terra; ele a cobre inteira; e sua progênie - na falta da distância entre seus dois pais cósmicos - não pode desenvolver-se durante o dia. Os filhos permanecem assim "escondidos"em vez de revelar sua forma própria. É então que Gaia se irrita contra Urano; ela convida um de seus filhos, Crono, a espreitar seu pai e a mutilá-lo, enquanto ele  se expande sobre ela, à noite. Crono obedece a sua mãe. O grande Urano, castrado por um golpe de foice, retira-se de cima de gaia, amaldiçoando seus filhos. Terra e céu estão, então separados, cada um permanecendo imóvel no lugar que lhe pertence. Entre eles, abre-se o grande espaço vazio, onde a sucessão de Dia e Noite revela e mascara alternadamente todas as formas. Terra e céu não se unirão mais numa permanente confusão análoga àquela que reinava, antes do aparecimento de Gaia, quando só Cháos existia no mundo. A partir de então, é uma vez por ano, no princípio do outono, que o céu fecundará a terra com a chuva do seu sêmen, que a terra gerará a vida da vegetação e que os homens deverão celebrar a união sagrada das duas potências cósmicas, sua união à distância num mundo aberto e ordenado onde os contrários se unem permanecendo distintos um do outro. Este rasgo, entretanto, no qual o ser vai poder inscrever-se, foi obtido a preço de um crime monstruoso pelo qual será preciso pagar. De agora em diante, nenhum acordo sem luta; no tecido da existência, não se poderá mais isolar as forças do conflito e as da união. Os testículos ensangüentados de Urano caíram em parte sobre a terra, em parte na água, eles deram origem a Afrodite, que preside a união sexual e ao casamento, às forças do acordo e da harmonia. A separação do céu e da terra inauguram um universo, onde os seres se engendram por união dos contrários, num mundo pautado pela lei e de complementaridade entre os opostos, que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizam."
Em relação a primeira parte, Anzieu começa por simplificar o mito da teogonia, reduzindo-o ao esquema das intenções incestuosas de Hera que se une a Urano, originado dela e da castração de Urano por seu filho, Crono. Mas, o que os helenistas enxergam nesse mito é a problemática filosófica ulterior, o conflito da união dos opostos, o contraste entre a ordem divina e a fugacidade da vida terrestre.Uma forma de "edipizar" todos os mitos, seria atribuir incestos em uniões que, para os gregos, seriam legítimas. Contra essa versão psicanalítica, os autores apresentam uma série de contra argumentos,  como por exemplo:
- apesar de Urano ser filho de Gaia, ele é gerado sem a união sexual, não havendo uma situação triangular: mãe-édipo-pai já que é engendrado dela mesma, sozinha. Crono não mata seu pai, castra-o, mas não para desposar sua mãe, já que desposa Rhéa. Antígona não é incestuosa com o pai, através da figura de seu irmão mas apenas reclama a igualdade de tratamento religioso entre eles.
Em relação ao segundo aspecto do artigo no qual Anzieu trata de Édipo em pessoa, Vernant & Naquet estabelecem que, para contra argumentar as teorias se urilizará do mesmo material de Anzieu, ou seja, dos mesmos textos de Sófocles, ignorando todas as lendas tebanas anteriores.
Delimitando isso, os autores observam que Anzieu comete o equívoco de dizer que Édipo "procura" seu destino incestuoso e parricida já que mesmo sabendo que seus pais são adotivos, ele foge deles, além de não ter se casado com uma mulher jovem, no intuito de fugir da possibilidade de se unir a sua mãe. Mas, durante toda a peça, Édipo busca a verdade sem sequer vislumbrar que seus pais de Corinto sejam adotivos.
A partir disso, Vernant se presta como advogado do diabo e encontra no texto uma possível sustentação para a teoria de Anzieu o qual, nem o próprio apontou. Trata-se do episódio em que, num banquete, um bêbado o insulta, chamando-o de filho suposto. Por outro lado, Vernant & Naquet desmontam esse argumento, dizendo que as razões por que Sófocles introduziu esse episódio são estranhas à psicologia das profundezas, mas atendem a uma ordem de necessidade:
1) estéticas: a descoberta de Édipo não poderia aparecer de forma repentina , como uma reviravolta imprevisível mas sim, deveria ser preparada psicologicamente o seu ambiente, ou seja, na história, precisaria haver elementos que preparassem a chegada dessa revelação.
2) religiosas: nas tragédias, o o oráculo é sempre enigmático, jamais mentiroso. Édipo, por sua vez, ao perguntar sobre a veracidade de sua filiação, recebe outra reposta que se trata de uma predição sobre o seu futuro em relação a seus pais. Portanto, é ele quem erra, ao resignar-se com uma resposta que não corresponde à pergunta feita. A razão disso, pode ser encontrada em traços da sua personalidade: ele é muito seguro e confiante, o "decifrador de enigmas. Contudo, sendo o próprio enigma a ser decifrado. Buscando a verdade, a sua clarividência será paga com seus próprios olhos.
Desta forma,  o "equívoco"cometido por Anzieu de que Édipo, desde o começo, sabe ser filho adotivo, tendo ido ao encontro do seu destino, quando, na verdade, ele o desconhecia, é extremamente necessário para a interpretação psicanalítica. Afinal, se ele desconhece a sua verdadeira origem, acredita que Pôlibo e Mérope são seus verdadeiros pais e que Jocasta, com quem se une, é uma estrangeira, então seria impossível que Édipo tivesse o complexo de Édipo, já que sua figura materna sempre foi Mérope.
Para completar sua interpretação, Anzieu propõe que Creonte também alimentaria uma afeição incestuosa com a irmã. mas, o que se observa, durante toda a peça é que o ciúme de Édipo em relação a Creonte diz respeito a um ciúme em relação ao poder, à desconfiança de que este estaria maquinando para lhe levar ao trono. Se tal crime dissesse respeito a sua esposa, a intervenção dela em auxílio a Creonte só aumentaria o furor do ciumento. Mas o que acontece, ao contrário, é um certo abrandamento dos espíritos.
Os autores, contudo, apontam para um outro trecho do texto que poderia sustentar a argumentação psicanalítica, a qual, inclusive,  foi apontada por Freud várias vezes. Trata-se do trecho em que Jocasta, tentando acalmar as apreensões de Édipo diz que "muitas pessoas nos seus sonhos partilharam do leito materno". Contudo, tal diálogo, assim como os sonhos em geral, para os gregos, têm significações oraculares. Exemplo disso é o trecho de Hípias, no qual Sófocles coloca um aprendiz tirando que sonha em se unir à própria mãe e, imediatamente, interpreta isso como um sinal da conquista da terra, devendo, portanto, entrar em Atenas e restaurar o poder. Ou seja, nesse simbolismo não há, para os gregos traços de angústias ou culpabilidades, típicas dos sonhos edipianos. (Fonte: VERNANT, Jean-Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Édipo sem complexo. In: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo, 1988. P. 77 a 101.)