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domingo, 26 de dezembro de 2010

"O mito na tragédia grega"

Publicado em 14 de março de 2010
Da tradição oral, com inúmeras variantes, as muitas versões na verdade não são apenas versões, mas  sim o próprio mito
Quando compunham suas tragédias, os dramaturgos gregos normalmente tomavam os temas da tradição mitológica. A mitologia grega, contudo, não tinha um livro canônico: não havia um registro único, autorizado, “oficial” do mito. Não havia, por exemplo, um único Odisseu. Para compor o caráter de Odisseu no Filoctetes, Sófocles não tomou como fonte a figura do herói da Odisséia de Homero. Os relatos míticos vinham de tradições orais (que passaram a conviver com a escrita a partir do século 6 a.C.) e com inúmeras variantes, às vezes muito diferentes umas das outras. Essas versões divergiam conforme a época, conforme a região, conforme o gênero poético (o Heracles da tragédia, por exemplo, provém de uma tradição diferente daquela do Heracles da comédia). É importante notar que essas muitas versões na verdade não são versões de um mito: são elas mesmas o próprio mito.
Ao tomar seus temas desse material mítico difuso e complexo, o poeta grego tinha ainda liberdade para modificá-lo e introduzir inovações – do mesmo modo que um autor moderno, ao tratar de um tema da mitologia grega, pode trabalhá-lo com toda liberdade. Em Les mouches, por exemplo, Sartre retoma o mito do assassinato de Clitemnestra por seu filho Orestes, com a ajuda de Electra, mas introduz elementos psicológicos e que não faziam parte das versões gregas do mito. Eugene O’Neill retoma o mesmo mito em Mourning becomes Electra, mas o adapta ao contexto histórico-cultural da guerra civil norte-americana. A infidelidade ao mito sempre foi uma prerrogativa do poeta. Há poucos anos os cinemas exibiram um filme norte-americano sobre a guerra de Tróia. Muita gente criticou o filme por não ser fiel à Ilíada. Também penso que o filme é um lixo, mas não por esse motivo. Sim, seu blablablá psicologizante é insuportável; a caracterização das personagens é pífia, a dramaturgia é ordinária – mas divergir da Ilíada é um direito do autor.
O mito só faz sentido como fonte de criação artística se o autor pode ser infiel a ele. Têm essa liberdade mesmo escritores que retomam o tema de livros explícita e inequivocamente canônicos, como os do Novo Testamento: assim, H. von Gumppenberg, em Der Messias, pode mostrar-nos Cristo como um homem comum que, para ter mais influência sobre o povo judeu, inventa a história de que é filho de Deus e, por causa dessa mentira, é levado à morte.
Mas voltemos à tragédia. A relação entre mitologia grega e tragédia não se esgotou na tragédia grega: a mitologia grega continua, até hoje, a fornecer temas para autores dramáticos. E hoje, como na Grécia antiga, os autores têm liberdade para trabalhar o mito como lhe aprouver. Contudo, há uma diferença fundamental na relação da tragédia com a mitologia entre os gregos e entre nós: para os gregos era dialética, para nós tornou-se unívoca. Tomemos, como exemplo, um mito que todos conhecem: o de Medéia. Jasão, com os argonautas, faz uma expedição à Cólquida para buscar o velo de ouro. Lá a filha do rei, a feiticeira Medéia, apaixona-se pelo herói e o ajuda no furto do velo e na fuga. Depois de algumas peripécias, Jasão e Medéia estabelecem-se em Corinto. Têm dois filhos. Jasão, contudo, troca Medéia por Glauce, filha do rei de Corinto.

Medéia, para se vingar, envia a Glauce presentes enfeitiçados. Ao ter contato com os presentes, Glauce e seu pai morrem. Para completar sua vingança contra Jasão – e esse é o cerne do mito –, Medéia mata os próprios filhos. Até hoje, quando pensamos em Medéia, vem-nos à mente a idéia da mulher que mata seus filhos para punir o marido que a abandona. Contudo, quando Eurípides compôs sua Medéia, em nenhuma versão precedente do mito, ela matava os filhos. Esse episódio é criação de Eurípides. E, desde Eurípides, o mito de Medéia continua a inspirar obras importantes na cultura ocidental – entre muitas outras podemos mencionar, por exemplo, no teatro, a Medéia de Sêneca e a de Corneille; na ópera, a de Charpentier e a de Cherubini; no cinema, a de Pasolini. Em todas as versões da Medéia posteriores a Eurípides a mãe mata os filhos. Já não podemos conceber o mito de Medéia sem esse assassinato brutal. Hoje, temos versões do mito. A Medéia de -Eurípides – assim como o Édipo de Sófocles, como o Agamêmnon de Ésquilo etc. – não é mera versão do mito: ela faz-se mito; ela é mito. Ela recebe temas de uma tradição mítica e os devolve, modificados, à mesma tradição; ela se incorpora à tradição. A mitologia grega era um work in progress para o qual contribuíram por séculos todos os criadores daquela cultura, anônimos ou não – poetas, escultores, pintores.

Hoje, os mitos gregos estão fixados; solidificaram-se, viraram cânone. É porque a Ilíada se fixou como modelo canônico do mito da guerra de Tróia que alguém crê ter o direito de criticar um filme por não ser fiel à Ilíada.
Os mitos gregos ainda nos inspiram e ainda temos liberdade para tratá-los como nos aprouver. Em sua Electra, Hugo von Hofmannsthal pode afastar-se dos velhos cânones para construir a personagem da heroína a partir do relato de um caso clínico de Breuer e fazê-la morrer em transe histérico ao final da tragédia, mas sua versão – assim como qualquer outra versão moderna – será apenas uma versão: não se incorpora ao mito, não transforma o mito. O mito grego não está morto, mas surdo; continua a nos dizer muito sobre nós mesmos, mas já não podemos lhe dizer nada.
Flávio Ribeiro de Oliveira
é professor de Língua e Literatura grega no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Entre outros trabalhos, é autor de uma tradução em versos da Medéia de Eurípides (São Paulo, 2006, Editora Odysseus)