Publicado em 14 de março de 2010
Da tradição oral, com inúmeras variantes, as muitas versões na verdade não são apenas versões, mas sim o próprio mito
Quando compunham suas tragédias, os dramaturgos gregos normalmente tomavam os temas da tradição mitológica. A mitologia grega, contudo, não tinha um livro canônico: não havia um registro único, autorizado, “oficial” do mito. Não havia, por exemplo, um único Odisseu. Para compor o caráter de Odisseu no Filoctetes, Sófocles não tomou como fonte a figura do herói da Odisséia de Homero. Os relatos míticos vinham de tradições orais (que passaram a conviver com a escrita a partir do século 6 a.C.) e com inúmeras variantes, às vezes muito diferentes umas das outras. Essas versões divergiam conforme a época, conforme a região, conforme o gênero poético (o Heracles da tragédia, por exemplo, provém de uma tradição diferente daquela do Heracles da comédia). É importante notar que essas muitas versões na verdade não são versões de um mito: são elas mesmas o próprio mito.
Ao tomar seus temas desse material mítico difuso e complexo, o poeta grego tinha ainda liberdade para modificá-lo e introduzir inovações – do mesmo modo que um autor moderno, ao tratar de um tema da mitologia grega, pode trabalhá-lo com toda liberdade. Em Les mouches, por exemplo, Sartre retoma o mito do assassinato de Clitemnestra por seu filho Orestes, com a ajuda de Electra, mas introduz elementos psicológicos e que não faziam parte das versões gregas do mito. Eugene O’Neill retoma o mesmo mito em Mourning becomes Electra, mas o adapta ao contexto histórico-cultural da guerra civil norte-americana. A infidelidade ao mito sempre foi uma prerrogativa do poeta. Há poucos anos os cinemas exibiram um filme norte-americano sobre a guerra de Tróia. Muita gente criticou o filme por não ser fiel à Ilíada. Também penso que o filme é um lixo, mas não por esse motivo. Sim, seu blablablá psicologizante é insuportável; a caracterização das personagens é pífia, a dramaturgia é ordinária – mas divergir da Ilíada é um direito do autor.
O mito só faz sentido como fonte de criação artística se o autor pode ser infiel a ele. Têm essa liberdade mesmo escritores que retomam o tema de livros explícita e inequivocamente canônicos, como os do Novo Testamento: assim, H. von Gumppenberg, em Der Messias, pode mostrar-nos Cristo como um homem comum que, para ter mais influência sobre o povo judeu, inventa a história de que é filho de Deus e, por causa dessa mentira, é levado à morte.
Mas voltemos à tragédia. A relação entre mitologia grega e tragédia não se esgotou na tragédia grega: a mitologia grega continua, até hoje, a fornecer temas para autores dramáticos. E hoje, como na Grécia antiga, os autores têm liberdade para trabalhar o mito como lhe aprouver. Contudo, há uma diferença fundamental na relação da tragédia com a mitologia entre os gregos e entre nós: para os gregos era dialética, para nós tornou-se unívoca. Tomemos, como exemplo, um mito que todos conhecem: o de Medéia. Jasão, com os argonautas, faz uma expedição à Cólquida para buscar o velo de ouro. Lá a filha do rei, a feiticeira Medéia, apaixona-se pelo herói e o ajuda no furto do velo e na fuga. Depois de algumas peripécias, Jasão e Medéia estabelecem-se em Corinto. Têm dois filhos. Jasão, contudo, troca Medéia por Glauce, filha do rei de Corinto.
Medéia, para se vingar, envia a Glauce presentes enfeitiçados. Ao ter contato com os presentes, Glauce e seu pai morrem. Para completar sua vingança contra Jasão – e esse é o cerne do mito –, Medéia mata os próprios filhos. Até hoje, quando pensamos em Medéia, vem-nos à mente a idéia da mulher que mata seus filhos para punir o marido que a abandona. Contudo, quando Eurípides compôs sua Medéia, em nenhuma versão precedente do mito, ela matava os filhos. Esse episódio é criação de Eurípides. E, desde Eurípides, o mito de Medéia continua a inspirar obras importantes na cultura ocidental – entre muitas outras podemos mencionar, por exemplo, no teatro, a Medéia de Sêneca e a de Corneille; na ópera, a de Charpentier e a de Cherubini; no cinema, a de Pasolini. Em todas as versões da Medéia posteriores a Eurípides a mãe mata os filhos. Já não podemos conceber o mito de Medéia sem esse assassinato brutal. Hoje, temos versões do mito. A Medéia de -Eurípides – assim como o Édipo de Sófocles, como o Agamêmnon de Ésquilo etc. – não é mera versão do mito: ela faz-se mito; ela é mito. Ela recebe temas de uma tradição mítica e os devolve, modificados, à mesma tradição; ela se incorpora à tradição. A mitologia grega era um work in progress para o qual contribuíram por séculos todos os criadores daquela cultura, anônimos ou não – poetas, escultores, pintores.
Hoje, os mitos gregos estão fixados; solidificaram-se, viraram cânone. É porque a Ilíada se fixou como modelo canônico do mito da guerra de Tróia que alguém crê ter o direito de criticar um filme por não ser fiel à Ilíada.
Os mitos gregos ainda nos inspiram e ainda temos liberdade para tratá-los como nos aprouver. Em sua Electra, Hugo von Hofmannsthal pode afastar-se dos velhos cânones para construir a personagem da heroína a partir do relato de um caso clínico de Breuer e fazê-la morrer em transe histérico ao final da tragédia, mas sua versão – assim como qualquer outra versão moderna – será apenas uma versão: não se incorpora ao mito, não transforma o mito. O mito grego não está morto, mas surdo; continua a nos dizer muito sobre nós mesmos, mas já não podemos lhe dizer nada.
Flávio Ribeiro de Oliveira
é professor de Língua e Literatura grega no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Entre outros trabalhos, é autor de uma tradução em versos da Medéia de Eurípides (São Paulo, 2006, Editora Odysseus)